Um homem em essência

UM HOMEM EM ESSÊNCIA

Uso um texto de Nietzsche para introduzir meu conto, percebi uma relação fantástica entre um texto e outro, salvaguardando, é lógico, a incomparável genialidade do alemão, nossos textos vão por caminhos semelhantes, ai está a razão da escolha.

Falo de três personagens: Eu, Ele e o Outro, esse Outro vai se erigir ao longo da história. O que torna esse texto bastante interessante é o fato de os três personagens (Eu, ele e o outro) serem a mesma pessoa, EU. Penso ter capturado um conflito comum mas raramente abordado desta forma.

Paulo.

( Extraído de Humano, Demasiado Humano)

“... O grande livramento, para os que estão presos a tal ponto, vem subitamente, como um tremor de terra: a alma jovem é abatida de uma vez, arrancada, arrebatada _ ela mesma não entende o que se passa. Um impulso e ímpeto reina e se torna senhor dela como um comando; desperta uma vontade e desejo de ir avante, para onde for, a qualquer preço; uma impetuosa e perigosa curiosidade por um mundo inexplorado se inflama e crepita em todos os sentidos”.Antes morrer do que viver aqui” _ assim soa a voz imperiosa e a sedução: e este “aqui” esse “em casa” é tudo que ele havia amado até então! Um súbito pavor e premonição contra aquilo que ela amava, um relâmpago de desprezo contra aquilo que para ela se chamava “dever”, um desejo tumultuoso, arbitrário, vulcânico, de andança, estrangeiro, estranhamento, resfriamento, sobriedade, enregelamento, um ódio ao amor, talvez um gesto e um olhar iconoclasta para trás para ali onde ela até então rezara e amara, talvez uma brasa de vergonha daquilo que acaba de fazer e, ao mesmo tempo, um regozijo por tê-lo feito, um arrepio bêbado, interno, jubilante, em que se denuncia uma vitória _ uma vitória? Sobre o que? Sobre quem? Uma enigmática, uma interrogativa, problemática vitória, mas sempre a primeira vitória: _ eis o que há de ruim e doloroso na história do grande livramento.”

“.... A solidão o rodeia e enrodilha, cada vez mais ameaçadora, mais sufocante, apertando mais o coração, aquela terrível deusa e mater saeva cupidinum _ mas quem sabe, hoje, o que é solidão?...”

“... Que bom que ele não permaneceu, como alguém delicado, embotado, que fica em seu canto, sempre” em casa “, sempre” junto de si “Ele estava fora de si: não há dúvida nenhuma somente agora vê a si mesmo _ E que surpresas encontra nisso!...”.

Friedrich Nietzsche

Um Homem em Essência

O sol entrou pela fresta da cortina despertando-me lentamente, fiquei por alguns segundos observando Ana, que ainda dormia, sentei-me esticando os braços para o alto como se quisesse pegar estrelas e bocejei longamente, olhei para a cortina entreaberta, deu vontade de proibir a entrada do sol por ali e dormir novamente... _ Bom dia! Tudo bem? _ O princípio de diálogo surpreendeu-me, mas depois de uma breve pausa, respondi encabulado. _ Vou indo. Tinha no tom de voz a dispersão de quem quer encerrar a conversa mas ele voltou potente, vigoroso, surpreendendo-me mais uma vez. _ Até que enfim! Bom dia, por onde você andou esse tempo todo? Tentei livrar-me com uma evasiva. _ Por aí. Não estava delirando, nem a voz que ouvia vinha do além, exercia sobre mim um poder indescritível.

Levantei-me, liguei o rádio, abri a janela do quarto, dei sinal de que a qualquer momento poderia fugir... Ele se interpôs entre meu olhar e a paisagem urbana que em breve me consumiria. _ Não fuja! Ouça-me. O tom autoritário irritou-me, mas não reagi como faço costumeiramente, ao contrário, me senti acuado, havia algo de hipnotizador naquele jeito arrogante. Resignado respondi. _ Está bem, pode falar. Ele voltou sem alterar o tom. _ Há muito espero por esta oportunidade, você teima em negar minha existência, carrega-me para um mundo que não é o meu, condena-me a viver na obscuridade, preciso de luz, os bastidores não me interessam, quero palco, o anonimato me apavora, sua excessiva humildade te serve, mas debocha da minha necessidade de existir, você é superficial, contido demais, não se arrisca, faz questão de não me deixar fluir. _ A agressividade daquelas declarações deixaram-me sem saber o que fazer juntei um monte de palavras, tentei organizá-las como quem organiza um quebra-cabeça, porém, nenhuma frase sequer fez sentido, aliás, nada poderia fazer sentido pois ele parecia ser o próprio sentido das coisas, era imenso muito maior do que a concretude da realidade é capaz de delimitar.

Tentei ganhar tempo, aumentei o volume do rádio, concentrei-me na canção, cantarolei alguns trechos, corri para o banheiro, liguei o chuveiro, enquanto a água morna caia sobre meu corpo fechei os olhos, contei até mil e quinhentos escovando os dentes, dei número aos ladrilhos, troquei de roupas pensando no jogo do flamengo, sentei-me à mesa do café... Alguém falou algo sem importância, mesmo assim me liguei no “papo”, joguei o foco de atenção para tantas coisas que já nem me lembro mais..., A tática estava correta, até que abri a porta pensando ter escapado definitivamente, encontrei na manhã a solidão da rua e ele estava lá. Agora o tom era desafiador. _Pensou que poderia fugir novamente? Desta vez não, não quero e não vou subjugar minha existência à sua. _ Foi ai que criei coragem e desferi o primeiro golpe. _ Se precisas tanto, por que só agora exiges isso? Perguntei pensando que pela primeira vez ia vê-lo embaraçado porém ele voltou mais irado ainda. _ Benevolência, apenas benevolência. Dei-te metade da nossa existência e o que fizestes dela? E vociferou_ Diga-me! Esperei pacientemente por esta hora, não fazes idéia do quanto desejei este momento, me desprezas, disso eu sei. Sou arrogante, impetuoso, e governado por impulsos que não cabem na mediocridade do seu comportamento. Pressenti que não poderia recuar e investi contra ele novamente. _ Alardeias coragem, força, queres brilho, parece-me que és a personificação da potência de todas as coisas. Ora, ora, não me faças rir..., Queres duelar comigo? O duelo meu caro, pressupõe antagonismo, lutarás contra quem se te lanças de mim? _ Não me reconhecia naquele momento, acuado reagi com firmeza. _ Desta vez ele voltou sereno. _ Engana-te, minha abstração é o que me liberta e ao mesmo tempo o que me aprisiona. Você representa a barreira entre o pensar e o fazer, entre a idéia e a ação. Estou preso a você como o gênio de Aladim está preso à lâmpada, minha existência está à disposição das tuas vontades, sou escravo das suas regras, dos seus medos, da sua realidade multifacetada, do teu mundo hipócrita.

Aquele inesperado intruso atormentou-me durante o pequeno trajeto de casa para o trabalho, quando cheguei frente ao número 59 da rua Paris, pareceu-me ter caminhado uns vinte quilômetros, entrei, o porteiro disse-me _Bom dia. _ Respondi com um breve aceno. O ascensorista pressionou o nº 10, afrouxei o nó da gravata e fiquei olhando fixamente para o marcador de andar, fui para o fundo, as pessoas tentavam entabular conversas que eram interrompidas a cada vez que o elevador parava, achei graça daquilo pois os diálogos nunca chegavam ao fim, tolos pensei. Veio-me uma vontade incontrolável de rir e não me contive, o riso soou alto, debochado, estávamos no quinto andar e por longos dez segundos suportei o vexame de não ter justificativa para aquela gargalhada. Senti o rosto arder, se a tez fosse clara teria enrubescido. Quando a porta abriu no décimo, sai apressado sem olhar para trás. Abri a porta do escritório, cumprimentei Silvia, a garota do atendimento, Robson, o ofice boy, quase me atropela na entrada, despachou um bom dia mecânico e seguiu. Sentei-me e antes de abrir a agenda na qual robotizava o dia seguinte, me detive observando o ambiente, nesse tempo muita coisa mudou, os móveis pesados do início hoje são modernos e confortáveis, tem mais luz aqui, nossas silhuetas ganharam formas bem definidas e as cores invadiram nosso dia a dia, o relógio colocado estrategicamente de frente para a porta de entrada, mudou o modelo, mas não mudou a posição, é ele quem, discretamente, nos dita o ritmo de trabalho, as velhas máquinas de escrever foram trocadas por computadores infalíveis, performáticos... Os razonetes cederam lugar às planilhas eletrônicas, notei que o ambiente em que trabalhávamos foi se ajustando às nossas necessidades e às facilidades que o tempo foi oferecendo, as coisas vão mudando gradativamente por fora, porque teimamos, às vezes, em ser os mesmos durante tanto tempo? Porque não percebemos que o que é móvel em nós está envelhecendo? A voz veio temperada de consentimento. _ Tens razão. Lembra daquela gargalhada no elevador? As mudanças comportamentais precisam ser justificadas sem isso, como não ser considerado louco? _ Ora, ora ninguém lê seus pensamentos, você sabia por qual motivo estava rindo, eles não. Amigo, o riso, o choro, a tristeza, a alegria e toda sorte de sentimentos denotados pelo riso ou pelo choro se justificam na liberdade que possuímos para elaborar nossas emoções, não precisarão nunca de um olhar que os aprove pois tudo que é genuinamente livre existe de forma imperativa. Ele seguia com aquela arrogância incrível _ Não há como fugir, a cada efeito corresponde uma causa, ou melhor, a cada ação corresponde uma justificativa. O conjunto das regras que nos tornam socialmente aceitos, misturam o bem e o mau, a medida que o que se manifesta em cada indivíduo não é a essência e sim o comportamento, quisera a sociedade ver os homens em essência, quisera... Desta vez eu mudei o tom e disse quase gritando _ Não! Você não é real! Ao que ele respondeu prontamente. _Se a sua essência não é real, você simplesmente não existe! Pensei retrucar, porém, percebi que o Fernandes, meu sócio no escritório de contabilidade, e Silvia olhavam-me sem nada entender. Busquei rapidamente uma saída para a situação que se tornava incomoda. _ Silvia, você não pode ser real, todos os documentos que preciso estão aqui, poupou-me trabalho de pelo menos três horas, obrigado, você não existe. Fui dispersivo o dia todo e quando o relógio ordenou fim de jornada tinha produzido muito pouco, quase nada..., Peguei a agenda e comecei fazer as anotações do dia seguinte e pela primeira vez desisti. Na página correspondente ao dia seguinte, anotei um grande ponto de interrogação. Tomei um cafezinho e sai.

No trajeto de volta pra casa senti medo, pensei que ele fosse me tomar de assalto novamente, mas, desta vez, segui tranqüilo. O vento de final de tarde tocava meu rosto, o paletó aberto, a gravata, impulsionada pelo vento, tocava meu pescoço como carícia de amante que pede desculpas. Parei no bar dos três amigos, esperei a bebida de fim de tarde, sentei-me à mesa de sempre, não precisei pedir o chope que o Zéca trouxe na pressão. A escolha daquela mesa não foi obra do acaso, aquele era o melhor ângulo pra se ver o movimento das ruas José Bonifácio e Paris, àquela hora, todos andavam apressados, as fisionomias quase sempre carregadas, massacradas pela rotina e pelo trabalho, aquele chope estratégico subtraía-me por instantes daquele quadro tenso. Por momentos meu olhar passeava nos outros e não em mim... Depois do terceiro chope já estava completamente relaxado, aquele hábito de fim de jornada era o tempo em que eu me encontrava e minha companhia sempre me fez bem. Naquele dia atípico, aquele momento, que era tão agradável, tornou-se de repente idiota, estúpido. Irritei-me. Pensei ter algo mais importante pra fazer. Livrei-me de vez do paletó e gravata, dobrei a manga da camisa e abri os três primeiros botões, aquilo me fez bem, me senti outro e penso que, naquele momento, era realmente outro, menos tenso, mais despojado, menos cauteloso, mais atirado, menos introspectivo, mais eloqüente, menos eu mais ele, que chegou e eu nem notei, sentou-se ao meu lado, bebeu do meu chope, bebeu de mim a porção eu, não percebi... Ele mantinha sobre mim uma superioridade incontestável, seria impossível não lhe reconhecer a abnegação daqueles longos anos de espera, olhei fixamente para o ponto mais distante da rua José Bonifácio e quando estava vazio no olhar e em mim ele voltou a falar. _ Olhe à sua volta, veja o triste quadro no qual sua figura está inserida, você, caro amigo (aquela intimidade excessiva deixava-me cada vez mais irado) é como jóia preciosa perdida em meio a bijuterias, é uma pintura rara em meio a quinquilharias, o lixo em que transformastes tua vida, tira o teu brilho, o teu aroma, acorda! Busca o espaço que te pertence. Desta vez não quis buscar argumentos, resignado me calei. Ele só saiu de mim quando a porta do apartamento se abriu e me vi no brilho do olhar daquele garoto que me chamou de pai, logo depois Ana beijou-me a testa, depois, como sempre, beijou-me levemente os lábios, dei-lhe um abraço, afaguei seus cabelos, segui pro quarto, Ana pra cozinha e Pedro pra sala, joguei o paletó sobre a cama, descalcei os sapatos, retirei a camisa e caminhei até a janela, que ainda estava aberta, lancei um olhar melancólico sobre a vida que pulsava lá fora, sentia-me como um Drácula ao nascer do dia, sabia que as pessoas me veriam melhor sob a luz, mas não aprendi a me locomover sob ela, a essa altura precisava das trevas para me ocultar. Pesou sobre meus pulsos todas as correntes do mundo, caiu ao meu redor infinitas barras de ferro, me senti preso, minha casa era meu túmulo. O que tenho de melhor fenece aqui... Bem pouco resta do que sou, posso medir todas as distâncias entre as coisas que me cercam, a essa altura tudo é previsível, tudo, absolutamente tudo, está sobre controle. Com o passar do tempo fui perdendo a curiosidade sobre o novo, meu pensamento vagou aflito por esse labirinto em que foi se transformando a vida, busquei freneticamente uma saída..., Não a encontrei..., Estava cada vez mais difícil encontrá-la. A toalha estava lá, no lugar de sempre, tudo estava como sempre, esperando que fizesse as mesmas coisas de sempre... Sabia ser doloroso o rompimento com a realidade aparente, uma agitação insuportável tomava conta de mim, torturava-me a idéia da indiferença, meus conflitos, tão reais, não podiam passar desapercebidos, essas coisas, esse lugar..., Esse mundo decididamente não é o meu. A idéia que me libertaria estava madura, pronta. Circunscreveu-se, naquele momento, um novo conceito de paz. Se não tivesse emergido à consciência que, naquele instante, tinha capturado aquela idéia, seria, para mim, impossível negar-me louco. Foi quando ressurgiu no espaço _ que creio real _ ele. O sarcasmo de sempre no tom vibrante de quem tem certeza de que bater o adversário é apenas uma questão de tempo. _ Ah! Meu caro, finalmente te vens a certeza da impossível nulidade, teu mundinho quadradinho ( a cada palavra o sorriso se agigantava naquele rosto cínico) se partiu em mil pedaços, vá, curve-se diante dos destroços da sua vida ou então ateie fogo e aguarde pacientemente que tudo se transforme em cinzas e, como Fênix, ressurja fazendo colidir o fim e o começo. Invadiu-me, de súbito, uma tristeza profunda, meus olhos passearam do nada para lugar nenhum, veio-me a sensação de estar caminhando sobre a tênue linha que liga a vida à morte... Fiquei tão vazio que, inominado, tive a sensação de flutuar, era o limbo... Vi, claramente, um homem em essência, era eu... Uma dor indescritível rasgou meu ventre, dor de parto. Do medo e da desesperança, da vida certinha, idealizada, perfeita como um círculo na qual rodei, rodei e sempre voltei ao mesmo ponto encontrando-me cada vez mais triste, das coisas que acreditei, do tempo que perdi e não pude recuperar enfim do conjunto desarmonioso de todas desilusões nasceu um novo homem.

Liguei a televisão... Adormeci... Não percebi quando Ana deitou-se ao meu lado... A janela continuou aberta, por ali entrou a brisa gelada da madrugada. Dormi um sono profundo e sem sonhos. No dia seguinte acordei com a sensação de ter desatado da vida todos os nós, sentia-me mais leve, menos comprometido com os imbecis ideais que sempre nortearam meu comportamento, sabia que um mundo novo me aguardava e tinha que estar preparado para ele, diante do espelho, naquela manhã ensolarada de verão, surpreendi no brilho do meu olhar uma nova luz, naquele mesmo segundo minha imagem se desfez diante dos meus olhos, os contornos que me limitavam explodiram de uma só vez, expandi em todos os sentidos me tornei no que sempre fui, resplandecente, luminoso... Estava pronto para recomeçar a vida que seguia...

No quarto à meia luz, Ana ainda dormia, meus movimentos foram sempre lentos, dessa vez troquei os sapatos pelo tênis, o paletó e gravata pelo jeans, desci as escadas que levavam à sala, encontrei Pedro se preparando para ir à escola. _ Bom dia papai. Disse ele. _ Não vai trabalhar hoje? _ Vou sim. Respondi _ Não vai trocar de roupas? Disse-lhe com um leve meneio de cabeça. _ Não, já estou pronto. Deixei a maleta 007, peguei uma bolsa à tira colo, que estava esquecida na gaveta do guarda-roupa, e fui. O pequeno Pedro fora a primeira pessoa que percebera a repentina transformação, começava ali uma luta interminável para destruir todos o rótulos aos quais estava preso, precisava, agora, provar que não mais me servia como referência. Eis aí, a tarefa mais ingrata do novo homem. A dificuldade residia em que essa peleja não se travaria no meu interior, devidamente resolvido, e sim no nível da aceitação. Era preciso provar para os que me cercavam que não estava louco. Que loucura isso... A frieza dos números, a precisão dos cálculos, as respostas incontestáveis, os gráficos demonstrativos, as estatísticas, as previsões, meu trabalho dava-me a falsa impressão de controlar o presente e adivinhar o futuro. Como não pude prever que isso aconteceria comigo? Estava feliz, mas sentia-me completamente deslocado diante dessa nova realidade é como se minha alma tivesse saltado fora do corpo e agora caminhássemos lado a lado. Foi pensando nessa imagem surreal que cheguei ao escritório. _ Bom dia surfista. Disse o Fernandes. _ Gostei do modelito. _ Arrematou Sílvia. Robson apenas me observou por alguns segundos. _ Pareceu-me que ele também iria fazer um comentário, porém, desistiu. Sorri ironicamente e avancei para minha mesa como se nada tivesse acontecido, o Fernandes não se conteve, abandonou, pela primeira vez, aqueles imperturbáveis momentos em que analisava um balanço, fechou os livros, caminhou em minha direção e, pesando bem todas as palavras, iniciou um discurso em tom bem baixo para que Sílvia não escutasse. _ Amigo você não acha que está na hora de tirar umas férias, você está um tanto quanto tenso. E continuou. _ Sei que algo de muito sério te perturba, nós estamos percebendo, semana passada conferindo alguns dos seus cálculos, encontrei erros típicos de falta de concentração. Amigo, o trabalho não é tudo. Procure um médico, cuide da sua saúde. Num movimento sutil, porém decidido, retirei a mão do amigo que repousava sobre meu ombro. Não contestei o que o Fernandes disse, percebi honestidade nas palavras daquele grandalhão desajeitado que fazia um esforço violento para abandonar a frieza e a impassividade características do seu comportamento. Fiquei por alguns segundos escolhendo palavras para que minha resposta tivesse o mesmo sentido fraterno, honesto com o qual ele me tratou. Dei à voz a mesma intensidade colocada por ele, Sílvia continuava alheia catalogando fichas de clientes antigos. _ Fernandes, há quanto tempo você me conhece? _ Ora amigo isso é pergunta que se faça? A mais ou menos vinte e três anos. _ Ledo engano! Respondi. _Você me conhece a exatos ( apontando o relógio na parede disse) vinte minutos, quanto à sua proposta vou aceitar estou mesmo precisando de um tempo para cuidar de mim. Não estou louco, a vida que é, às vezes, uma loucura, muitos não percebem o quão ela é efêmera e passam por ela sem se dar oportunidade de serem o que realmente são. Formulam falsos conceitos de felicidade se guiam por eles e pensam que são felizes. Confesso que estou em conflito, lancei-me para o meu interior tentando desmitificar-me, desmentir-me e por fim destilar-me em busca da essência. A essência Fernandes! Sabes o que é isso? _ Fui alvo de todas as brincadeiras do dia e pela primeira vez, centro das atenções. O expediente terminou, todos se foram..., E quando me encontrei só, diante do grande tabuleiro de xadrez que a vida é, me vi ante ao primeiro xeque. Como me livrar dos malditos rótulos do outro? Provocar uma mudança externa era, de fato, bem fácil. Uma alteração cá e outra lá em alguns hábitos, adquirir outra postura diante dos problemas, mudar o que é observável no comportamento provocaria a quebra de uma série de conceitos petrificados no que é palpável em mim, mas somente isso não seria suficiente, era preciso ganhar o nível da aceitação e este seria um grande desafio, provar a viabilidade das minhas novas perspectivas sem ganhar o tom maléfico da rebeldia. Havia em mim uma revolução grandiosa que me deixava cada vez mais agitado, cada vez mais ansioso por desvendar os enigmas que iam surgindo um após outro, a vida, finalmente, tornou-se imperativa, intensa, estava no epicentro de um furacão e rodopiava feito folha de papel. Quando a tempestade passar, tenho certeza passará, o tempo com suas habilidosas mãos vai esculpir no espaço o lugar que me cabe.

Só, Diante daqueles livros repletos de cálculos, chorei baixinho, as lágrimas caíram sobre a capa preta do livro numa improvável combinação de lógica e emoção, estava seduzido pelos novos planos, mas ainda restava viva a consciência do tempo perdido, da vida que se esvaiu em vão, caiu sobre meus ombros cansados a inexorabilidade do tempo.

Quando finalmente fui embora, a noite já tinha caído e as pessoas que passavam por mim não podiam perceber o brilho feliz que reluzia nos meus olhos. Ana abriu a porta dei-lhe um beijo cheio de volúpia, abracei-lhe como quem quisesse ter em meus braços a alma daquela mulher, ela quase sem fôlego assustada não sabia o que dizer rodopiamos pela sala como se fossemos bailarinos atirei-a, por fim, no sofá. Ana retomou a respiração e ainda assustada perguntou-me. _ O que houve meu bem? Viu o passarinho verde? _ Não. Respondi. _ Ana meu amor estou de férias, viajo amanhã bem cedo, não sei para onde vou, só sei que preciso encontrar-me só em algum lugar deste planeta. A resposta dela não correspondeu ao meu entusiasmo. Ouvi, então, pela primeira vez a pergunta que definiria da maneira mais cômoda e mais provável minha mudança de comportamento. _ Você está louco? Respondi com outro beijo, desta vez mais apaixonado ainda, estava enamorado pela vida, alucinado pelas coisas que sempre me cercaram e não pude perceber. Num tom debochado mas sincero falei. _ Ana, o passarinho cinza ficou verde e anuncia no seu trinado encantador o raiar de um novo tempo, é tempo de mudar. _ Você está querendo me abandonar? Arrumou um rabo de saia? É esse o passarinho verde com o qual você vai se encontrar? Não sabia o quanto era difícil para o comum das pessoas entenderem que: “ todo prazer e todo sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo assim que ela se torne material e passe a julgar a verdade das coisas conforme as indicações do corpo...” Platão está certo. Ana não pode participar do meu melhor momento, o mais verdadeiro, aquele em que me julguei feliz. A “coisa” se configurava mais complexa do que eu pensava, de repente o que era felicidade passou a ser, rapidamente, loucura, fuga e adultério. Minha alma estava presa a esse mundo que subtrai das palavras os signos abominando amiúde a intenção, levando, quase sempre, a arquitetura das frases ao abismo do equívoco. Agora que me devolveram as asas voarei para bem longe daqui, talvez, não encontre nesse mundão de meu Deus o paraíso de Adão nem a Utopia de Thomas Moore. Talvez, tenha que construir um paraíso para viver a utopia do renascer. Só o deus Baco e milhares de taças de vinho para me desatrelar das coisas do passado, preciso tentar... Não respondi, apenas um sorriso quase que imperceptível, subi as escadas pensando que o rompimento com as coisas que fizeram parte daquele período em que fiquei enclausurado na inércia do previsível teria que se dar, também, no plano físico. O rompimento teria que ser brusco, definitivo... Materializou-se o isolamento cultural e emocional no qual vivi, fez-se a ruptura que já era previsível, faltava-me alguém que tivesse sensibilidade suficiente para me perceber, havia em mim um universo bonito e virgem pronto para ser explorado. Em um mesmo instante a vida perdeu e ganhou sentido, confirmou-se cíclica fazendo-se em mim morte e nascimento. Ana era o protótipo das pessoas que me cercam, conclusões precipitadas, julgamentos prematuros, insensibilidade a toda prova, sentimentos menores presos à almas pequenas num mundo sem janelas. Fui, por longos anos, como um prisioneiro injustamente condenado à forca caminhando a passos lentos em direção à morte. Minhas asas... Graças a Deus devolveram-me as asas, vou alçar vôo para deixar o que é pretérito adormecido no território das lembranças. Deixo um CD do Djavam, um diário do Jean Genet, a última muda de roupa suja no cesto do banheiro, a toalha molhada em cima da cama, a janela entreaberta, a brisa da noite espalhando meu perfume pelo ar, um terno cinza, um sapato bico fino, uma camisa de linho, a cama em desalinho, um sorriso que ninguém viu e a certeza de que olhos seculares jamais me verão serão preciso retinas dotadas de sensibilidade poética, está difícil encontrá-las aqui... Ficando condeno-me a solidão. Alcei vôo. Se morrer é desagregar a alma do corpo, penso que morri. Ao meu ato, alguns chamarão covardia, outros fuga e os mais insensatos loucura, não posso estar louco, pois, a sanidade passa pelo conhecimento que tenho de mim mesmo (isso não sou eu quem digo é Genet que diz no livro que abandono). Estou partindo em busca de um lugar onde possa ser visto como realmente sou, onde possa registrar, sem medo, a poesia que exala a vida, onde possa dedicar tempo a procura da beleza e da perfeição de todas as coisas... Vou para o mundo dos livros construir com palavras outra história que me conte melhor.

Quando cheguei em Esperança, a manhã principiava raiar, na rodoviária quase deserta, àquela hora, alguns homens sentavam-se encolhidos nos quiosques, xícaras de café fumegante, manteiga derretida no pão, conversas sonolentas... Senti-me como um Peter Pan chegando à terra do nunca, aqui, minhas únicas referências, eram as batidas aceleradas do meu coração indicando que em mim o que se da nome de vida, ainda pulsava. O mundo, que à essa altura me procurava, seguia sua massacrante e entediante rotina. Finalmente estava só, tinha em mim o ponto de partida, era como uma folha de papel em branco a espera de uma história, qualquer fôrma poderia detonar, naquele instante, o movimento que me daria a forma, aqui posso ser o vilão, mau, impiedoso ou o mocinho defensor dos fracos e oprimidos, o topo ou base de qualquer pirâmide, o Super Homem com seus músculos de aço ou o ratinho amedrontado fugindo do Jerry, pois, em Esperança volto ao zero e o zero, em perspectiva, é tudo e é nada ao mesmo tempo, sou potência, potência de todas as coisas, serei meu próprio deus, ditarei meu destino. Abri os braços feito Di Caprio na proa do Titanic e deixei que o vento gelado daquela fria manhã tocasse de leve a silhueta de um homem feliz por ver pela primeira vez, como Narciso, a bela imagem do seu rosto refletido no céu dos seus pensamentos, tive, então, consciência da minha essência e ela era linda, apaixonante..., penso que mereci a vida melhor do que foi, espaço maior do que ocupei, pessoas melhores do que as com quem convivi, não podia ter fabricado paixões para furtar da vida alguma emoção que fosse considerada nobre. Não sabia mas já me esperava em Esperança, a intuição revelava-me isso... Foi preciso reencontrar o barro de Gênesis e esculpir um novo Adão ou o elo perdido no caminho da evolução para descortinar em mim um lugar chamado Esperança. Agora, quando as coisas do mundo me atormentarem viajarei para Esperança, lugar perfeito para reinventar a vida. Aqui terei oportunidade de sempre recomeçar, de dar o primeiro passo rumo a uma nova idéia, aqui o ser criativo que habita em mim está livre dos seus dos seus opressores. Convivo com meus personagens, sou dono do universo que invento, registro meus pensamentos no caderno da eternidade. Escrevo... descrevo a vida.

Quando Ana bateu na porta da biblioteca, já haviam se passado três dias em que não dormi, tomei apenas uma xícara de café fumegante e um pão com manteiga, a barba estava crescida, os olhos estavam fundos, havia me destilado... O que exalava em mim era a mais pura essência do que sou, voltava para o que chamam realidade. O consumismo do mundo em breve transformará em produto de venda minha essência acondicionada neste frasco que chamarei livro.

Gavião Caçador
Enviado por Gavião Caçador em 12/04/2007
Código do texto: T446815