Bar Esplanada

— Boa noite senhor . Tudo bem ? O garçom aproximou-se do homem obeso e grisalho , ocupando uma mesa próxima do balcão.

— Tudo bem . Uma cerveja e um pastel de frango . Não precisa esquentar muito , não

— Só isso mesmo ?

— Ah , um maço de Lucky Strike , por favor .

Recuou a cadeira, apoiando as costas na parede . Abriu o zíper da jaqueta e arregaçou as mangas . Vez por outra esfregava as mãos e olhava o relógio . Na TV , o jornal Nacional .

— Tá aqui. E no capricho .

— Chove o dia inteiro e ainda faz esse calor .Só mesmo uma cerva nesse mormaço.

Um gole na cerveja enquanto folgava a camisa ..

— Valdemar ainda é o dono daqui ?

— Era. Faleceu no ano atrasado .

— Que coisa , rapaz....morreu de que ?.

— Suicidou – se .Um tiro na cabeça .Depressão demais e estourou os miolos.

— Fomos vizinhos muito tempo , lá no Engenho do Meio .Era um cara tranqüilo ,gente fina. Sempre falava que tinha um bar no Cordeiro , com o nome de Esplanada .

— Um troço horroroso , abalou todo mundo . Logo seu Valdemar, dar tiro na cabeça.

— E a família , vendeu o bar ?

— Não senhor . Deminha , o filho mais velho , assumiu a gerência .Era muito pegado com o pai . Os outros irmãos só queriam saber da faculdade , um é engenheiro , outro advogado .Nem pisam aqui .Mas não tiro a razão deles , não . Bar é um negócio que é hoje e pode não ser amanhã.

O garçom sacou uma caderneta espiral do bolso e fez algumas anotações .

— O senhor também tinha bar ?

— Não , negociava peças de automóvel . Mudei –me para São Paulo , para trabalhar com meu irmão .Fiquei por lá mais de dez anos .Ganhamos dinheiro, até noventa e dois ,quando a coisa ficou complicada . Ninguém queria mais estocar nada , era tudo na hora , terceirizado . Teimamos em manter o sistema antigo e nos ferramos direitinho .

— E seu irmão ?

— Continua por lá . Diz que não volta pra cá nem amarrado. Tentei o interior, mas também não deu certo . Quando as coisas melhoraram, já tinha abandonado o ramo .

— Muito tempo lá , terminou acostumando . Tenho um irmão assim mesmo . Mora em Diadema há mais de trinta anos.

.

A chuva recomeçou , acompanhada de vento . Suspensa na entrada , a placa luminosa acendia e apagava á cada oscilação. A chuva engrossava , tamborilando no toldo azul sobre a porta principal. Quase vazio, o bar Esplanada adentrava a noite .

O gordo completou o copo servido pelo garçom. Sobre a mão esquerda , tinha um sinal escuro e ovalado , com um tufo de cabelos encaracolados e curtos . Tomou dos talheres , retalhando o pastel em fatias pequenas , ingeridas entre goles de cerveja.

— Gostoso , esse pastel . Comi uns lá no Brás que só desciam no empurrão da cerveja . Também , com uma cerva empurrando , o que é que não desce ?

— Uma cerva no ponto desce até estricnina . Um vizinho meio aloprado tentou envenenar –se duas vezes . Só conseguiu misturando Malt 90 com o veneno . Foi vapt - vupt . Bebeu e descangotou na hora . Faz quase vinte anos . Parece que estou vendo ele , espumando feito cachorro doido e a pobre da esposa abraçando aquela alma sebosa .

— Quem quer morrer mesmo , faz assim . Estricnina só perde pra bala na cabeça e olhe lá .

Guardou a caderneta e inclinou –se sobre a mesa , baixando o tom de voz .

— O seu Valdemar morreu assim , tiro no ouvido ; arma nova , bala nova , os caras da Perícia levaram um tempão para extrai – la da parede . Ficou deprimido .Já era magro ,perdeu muito peso . Evitava as pessoas. Essa tal de depressão bebe o sujeito pelas beiras , feito sopa quente .

Sussurrava , passando um pano na mesa :

— Varou a cabeça do cara . Cheguei a ouvir o tiro , daqui do salão .Trinta e oito cano curto , mas que pipoco , meu senhor !

O gordo virou o copo e encheu –o até a borda . Passou as costas da mão peluda na boca , enquanto era servido de guardanapos . Na TV , a promessa de mais chuva para o dia seguinte .

— Teremos um inverno pesado este ano . Qualquer chuvinha safada alaga essa rua , em menos de uma hora .

— Em São Paulo acontece também ; ano passado a água arrastou um carro por uns cem metros , próximo da rua onde morei . Saiu até no noticiário . O motorista quase que se lasca .

Outro gole de cerveja . Acende um cigarro .

—Rapaz , que pastel gostoso .Vocês fazem aqui mesmo ?

— Não senhor .O fornecedor é uma senhora lá da Boa Vista. Antes, era dona Neusa quem fazia . Uns pastéis arretados .O petisco mais servido neste bar.Ela parou quando não podia mais levantar da cama .

—.Neusa...não era a mulher do Valdemar?

— Sim senhor . Morreu quase um ano depois dele . Um câncer no sangue , algo assim . Não durou mais de seis meses . Um tipão de mulher ; definhou da noite pro dia ..

Bateu com a mão sobre a mesa vizinha , enquanto recolhia copos numa bandeja .

— Essa vida é mesmo uma merda . A gente pensa que está bem e de repente , tchau , de caixão e vela preta .

Uma coxinha e mais um copo de cerveja .

— Desculpe ter falado tanto em morte . O senhor ficou até meio pensativo , assim de cabeça baixa .

— De jeito nenhum . É cansaço mesmo . Passei o dia todo correndo pra lá e pra cá . Quando parei para relaxar um pouquinho , a fadiga encostou . Fui vizinho de Valdemar , mas não tínhamos muita aproximação . Ele ficava mais por aqui , a maior parte do tempo , não era ?

— Era daqueles de botar a barriga no balcão , mesmo . Aqui dentro , do começo ao fim do expediente . E era jeitoso pro negócio de bar . Muito sério , não bebia . Ás vezes , era até meio chato . Mas pagava em dia , tratava bem a freguesia e é isso que faz um bar funcionar , não é mesmo?

— Sem dúvida . E o filho , tá dando conta do recado ?

— Sim, Deminha tomou gosto pela coisa . O cara é gente boa , trabalhador , mas é meio trancado , na dele . No negócio de bar , cara fechada espanta freguês . É o jeito dele , mas o que o freguês tem a ver com isso ?.

Outro pedido de cerveja e pastel .O homem olhava a TV ; vez por outra esfregava os olhos , observando os ventiladores desligados e o bem conservado teto de madeira . O garçom retornou mais rápido . Olhou em torno , fez menção de sentar–se numa cadeira da mesa vizinha interrompendo o gesto , ao abrir – se a porta atrás do balcão . Entrou um homem alto e corpulento, trajando avental plástico , aparentando menos de quarenta anos , cabelos castanhos rareando no alto da cabeça, olhos escuros e tristes . Consultou o relógio no pulso esquerdo,onde havia uma mancha escura e ovalada , coberta por cabelos escuros contrastando com a pele alva ao redor . Assistiu ao resto do noticiário e aproximou –se da mesa do freguês , no andar gingado dos gordos .

— Boa noite , senhor. A coxinha estava boa? Espero que tenha gostado do pastel também . O Eurico é meio conversador , mas é gente boa .

— Claro, levamos um papo muito agradável .

— Mais uma cerveja ? E a TV ? Quer assistir a outro canal ?

—Muito obrigado , mas o noticiário acabou e não sou muito ligado em novelas .

Levantou –se , pagou a conta deixando uma generosa gorjeta e saiu . Deminha acenou positivo para o garçom , que começou a baixar a porta corrediça , de aço . Retornou ao balcão , ajustando o cabo da caixa registradora. A TV anunciava dez horas da noite .

andre albuquerque
Enviado por andre albuquerque em 05/09/2013
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