O verbo pelo verbo
Acordaram-na daquele sonho tão intenso de uma forma súbita - e, poderia-se dizer, não respeitosa - por um familiar pouco ligado. Já não era a primeira vez, e toda a vez que isso acontecia era em sonhos, geralmente, importantes, que acabavam esquecidos, ficando apenas a sensação de que, astralmente, acabara de testemunhar um símbolo de extrema significância. Por isso, ficava incomodada, frustrada e, até mesmo, perturbada durante as primeiras horas do dia.
Desta vez, não foi diferente. Tentou resgatar os detalhes, encolhendo-se embaixo do lençol, pois o que conseguia lembrar a chateava. Um peso na alma. Mas principalmente, porque no fundo queria livrar-se da primeira impressão deste sonho - estaria em negação?
Em uma sala completamente escura, mas que "vibrava" como se as paredes fossem em tom avermelhado, uma voz falava com ela em tom de superioridade, e oferecia uma esfera de algo semelhante ao vidro que irradiava uma luz própria e discreta. Nesta esfera seriam guardadas toas as suas lembranças, e ela se esqueceria de tudo. Essa oferta já havia sido feita para alguém que ela conhecia - e não conseguia recordar quem, mas lembra que estava de luto por esta pessoa que simplesmente entregou as lembranças e partiu - e agora esta mesma oferta era a ela apresentada. Ou seja, a principal ideia do sonho é que, após um dia cotidiano e comum, nossa protagonista entregaria suas lembranças e partiria para o mundo do esquecimento...
Novamente, o encarar da morte. Dormiu pensando nisso. Pensando: "afinal, qual o sentido da vida?". Na verdade, dormiu pensando estar (e, de fato, sentindo estar) aconchegada em um gigantesco útero materno (talvez de onde todos nós viemos), para tentar livrar-se da sensação de ter sido largada nesse mundo, tateando no escuro a procura de algum objetivo maior, que a faça aliviar a sensação de boiar, solitária, em pensamentos tão limitadores - no sentido de pensamentos que dão limite; limite à alegria, limite à vida em si.
Geralmente esses pensamentos vinham com intensidade antes de dormir. Eram cada vez mais frequentes, e começaram agora, após desocupar-se de atividades formais (como estudar e trabalhar). Enquanto outrora a mente ocupava-se em pensamentos "mundanos", atualmente preocupava-se com pensamentos "humanos". Desta vez, porém, eles vieram ao seu encontro antes de dormir e TAMBÉM ao acordar. Todos esses pensamentos a deixavam perturbada e por isso evitava iniciar o dia com eles - pois era como buscar a loucura, uma imagem desfocada ou inexistente, um significado escrito em fonte tamanho 8 em uma enciclopédia com volumes gigantescos e sem índice remissivo.
Enquanto a esfera pairava a sua frente, a nossa protagonista pensava nas consequências de pegá-la em suas mãos ou não. Perguntou à voz: "mas se eu pegar, é certo que me esquecerei de tudo?". A resposta que recebeu foi: "cada um entende o que lhe ocorre de uma maneira". Era como se aquela esfera fosse uma joia preciosa, e cada um precisava cuidar e guardar a sua com muito zelo - pois lá estariam guardadas todas as lembranças e todos os significados da vida que acabara de viver.
Esta resposta de certo modo agradou-a, já que, se dependesse do ponto de vista de cada um, não necessariamente abandonaria todos aqueles que ama... Todos aqueles que ama... Talvez o grande aprendizado para todos nós seja aprender a desapegar-se de amar e, simplesmente, amar. Sem paixão.
Estamos tão apaixonados por aqui estar e por poder amar tantas pessoas que não percebemos quando a paixão torna-se diária. Sendo a paixão aquele deslumbre, o encantar-se com os primeiros contatos, por fim esmaece com o dia-a-dia, e, assim, esquecemos de amar. Já amar...amar simplesmente, amar totalmente, amar incondicionalmente, puramente verbo, sem um sujeito, é atuar sem o ego atuando: "Amor... tua real identidade é assustadora demais para minha egoísta consciência". Já escrevera isso em um poema, certa vez. Talvez, uma das poucas "verdades-verdadeiras" que havia escrito.
Entendeu que não teria como escapar desta etapa, apenas adiá-la. E que a única escolha era acatá-la com resignação, com entrega, sem pensar, sem temer. E foi com esse sentimento que apanhou a esfera com uma das mãos, sentido a sua superfície tão estranha, que não era nem densa e nem suave, que não era pesada e nem leve, e tão pouco fria ou quente. E luminosa, mas que, ao ser apanhada... apagou-se.
O que sucedeu-se foi uma coleção de cenas pouco lembradas, infelizmente. Era como se tivesse ainda suas lembranças, mas começara uma nova jornada, e reencontrou algumas pessoas após isso. Algumas que já não via com tanta frequência. É, exatamente como dizem da morte: saiu da sala escura, reencontrando-se com outras pessoas, amigos seus, que já haviam pegado a esfera, e ela sabia isso, pois eles se olhavam com alguma verdade que transparecia o alívio até mesmo no olhar, e certa hospitalidade, uma sensação sutil de ser bem recebido. Mas o mundo todo era o mesmo.
Entregou sua esfera a um amigo e pediu-lhe que cuidasse pois iria no banheiro e tinha medo de deixá-la cair (aqui, entra em ação a parte engraçada do seu eu-lírico-onírico). Ele era um rapaz muito preocupado e com certeza cuidaria dela. Porém, a sala desmoronou em cima de uma árvore (onde recordava haver duas pessoas embaixo dela)... e a primeira coisa que ela pensou foi na esfera, achando que teria sido perdida - o que não é possível confirmar, já que foi justo neste momento que acordaram-na.
Ficou até com medo de sair de casa, queria voltar a dormir para entender melhor o sonho - na verdade queria negar seu significado - e até, quem sabe, resguardar-se de um possível fim. Por outro lado, tinha certeza que ao reencontrar-se com as pessoas e amá-las, estaria mais leve.
Ciente da sua própria finitude - após diversas vezes deparar-se com pensamentos do tipo: "como será a morte?"; "como será morrer?" ; "o que há depois?" - chegara novamente a conclusão de que, no fundo, o que importa nesse mundo não é porque viemos, para onde vamos, mas sim que, talvez, nosso objetivo aqui seja essencialmente aproveitar essa dimensão diferente e (re)aprender a amar; ensinar uns aos outros o amor e espalhá-lo pelas sete direções - e tantas outras que deverão existir! - dessa realidade tão densa.
Lembrou-se do refrão de uma música: "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade, não há". Recordou que uma vez em que ouviu o verso e ficou fortemente emocionada e, ao olhar ao redor, todos também estavam emocionados: tinha a certeza de que pensamentos e sensações muito parecidos percorriam por todos naquele momento, pois estavam sintonizados numa mesma vibração.
Amar como se não houvesse amanhã: amar intensamente, cada um e todos e tudo, sem nos importarmos se seremos retribuídos. Amar e cuidar, amar sem um sujeito, amar simplesmente, pois afinal, são os momentos de amor que trazem o significado constante e vivo. Amar anulando-se, amor incondicional. E levantou-se da cama com a coragem necessária para viver o novo dia, e se preciso, em paz beijar a morte, a finitude, em paz o tatear no escuro.
Não é o nascimento o princípio; a morte é apenas a outra metade da face de algo maior (a vida). Por isso nunca será o início e nem o fim do trajeto.
É o amor o princípio que nos faz morrer-renascer... O motivo e o complemento de toda a existência.
O verbo... pelo verbo.