UM PALHAÇO UMA SAUDADE
Para sempre Betinho levaria em sua memória a lembrança do amigo de infância e adolescência.
Surgira na vida do menino quando a cadela, sua mãe, fora levada pela impiedosa carrocinha que recolhia cães vadios “para fazer sabão” como era dito às crianças que a odiavam. O filhote, por haver se afastado da mãe entrando em um terreno baldio atrás de um gatinho com quem costumava brincar, viu-se abandonado. Talvez aquela tenha sido a única vez em que baixara suas orelhas. A tristeza em seus olhos e seu choramingar encheram de pena o garoto.
- Mãe, deixa eu ficar com ele, a malvada da carrocinha levou sua mãe, por favor, mãe deixa?
Dona Ruth não resistiu ao pedido do filho e ao olhar triste e súplice que lançava-lhe o cãozinho.
Cresceram juntos e todos os dias acompanhava Betinho até a porta da escola, em principio levado por sua mãe, depois só e espontaneamente, alegre, saltando a balançando o cotoquinho de seu rabo.
Não era um cão qualquer. Era um cão daqueles que conversa com os olhos, daqueles que parece saber o que vamos fazer e se antecipa tentando ajudar de alguma forma. Não era adestrado, mas seu amor pelo menino era tanto, que parecia adivinhar seus pensamentos e viver suas emoções.
Se o visse triste por estar de castigo estendia a punição a si próprio, não saía de seu lado. Intrometia-se na pelada da turma correndo atrás da bola e do menino e só parava, quando depois de repreendido e pego no colo era colocado fora do campinho. Ali ficava quieto, mas atento, e se acaso o garoto sofresse uma queda ou discutisse com um colega, ele imediatamente invadia o gramado lambendo o menino ou latindo severamente para o “inimigo”.
Seu nome, bastante incomum para um cão, combinava perfeitamente com seu caráter, essencialmente brincalhão. Chamava-se Palhaço.
Pelos crescidos sobre os olhos, como sobrancelhas, acentuavam ainda mais seu jeito quase humano de olhar. O branco de seu corpo era maculado por manchas negras arredondadas, o que também reforçava a razão do seu nome.
Adorava rolar na grama do jardim íngreme da casa como fazia seu dono. Dormia com Betinho somente no dia em que tomava banho, entendia que seria recusado se sujo e tranquilamente deitava-se no tapete aos pés da cama do menino, nunca sem antes choramingar um pouco.
Pela manhã, ao perceber que o menino despertava apressava-se a esconder um de seus chinelos e ficava aguardando que ele lhe desse falta. E quando ele o procurava acompanhava-o aumentando o latido a medida que o menino se aproximava do esconderijo, que por impossível que pareça, nunca era o mesmo. Ele era mestre em esconder as coisas.
Não era exatamente um puro vira latas, talvez tivesse descendência nobre por parte de pai, já que sua mãe era uma cadela de rua sustentada pelo açougueiro da esquina. Seus irmãos haviam sido levados por uma enxurrada que transbordara o riacho local da qual somente ele e a mãe escaparam, com a pobre segurando-o firmemente com os dentes pela nuca, com aquele vigor que só as mães tem para defender seus filhos nadando desesperada até conseguir saltar para um sofá que vinha boiando e que finalmente encalhou sob uma ponte, o que lhes deu a oportunidade de sobreviverem.
Quando se tornaram amigos, Betinho contava apenas sete anos de idade e seu amigo inseparável, obediente e brincalhão parecia não haver envelhecido agora que o menino já alcançara a adolescência e trocara de escola. Palhaço não tinha mais como acompanhá-lo, mas o aguardava no portão de casa e só fazia sua refeição quando o rapaz chegava na hora do almoço. Latia alegre bem antes de seu amigo chegar com a certeza que seu faro lhe garantia.
Aquela tarde saíra acompanhando seu dono, que junto com outros jovens, se dispunham a roubar mangas, no quintal do velho Juvêncio.
O senhor já prevendo que poderia repetir-se o que já vinha acontecendo nos anos anteriores havia tomado suas providências.
Betinho fora o primeiro a saltar o muro e Palhaço acompanhou-o, entrando por entre as tábuas do portão. Surpresa para ambos quando da varanda da casa saiu enorme Dobberman negro, que depois de uma corrida saltou sobre Betinho e abocanhou seu ombro. Palhaço não pensou duas vezes: Partiu para cima da fera e cravou-lhe os dentes às costas. O animal virou-se e ainda mais feroz aceitou seu desafio e o que se viu a seguir foi uma encarniçada luta entre um pequeno vira latas e uma fera incontrolável.
Betinho, ainda que ferido, batia no cachorrão com um pedaço de pau, Seu Juvêncio, que saíra atraído pelo estardalhaço da briga, gritava com o bicho até que conseguiu com muita pancada separá-los. Mas era tarde. Palhaço, agora esvaindo-se em sangue, no colo de Betinho dava seus últimos suspiros e em seu olhar o rapaz pôde notar um sorriso de consolo e despedida antes que ele piscasse pela última vez.
Durante o resto de sua vida, sempre ao levantar pela manhã, Roberto ao encontrar seu par de chinelos como o deixara ao deitar, não precisaria buscar pela casa a lembrança do amigo que dera a vida por ele. Sua saudade o acompanharia para sempre.