Correndo Como o Diabo (Primeira Parte)

Terça à tarde, segundo horário: Descobri que não me saí tão bem em Gramática quanto pensava. Nada complicado, a prova estava até compreensível, e talvez esse seja o sinal de que na verdade ‘eu’ está errado. Alguns exames como Matemática; nesses testes de cálculo em que, milagrosamente, está indo tudo bem, e, suas fórmulas não parecem falhar; aí é que mora o perigo, já que se o indivíduo não revisou antes do teste, ele pode ter errado tudo. Bem, com a Gramática tinha sido mais ou menos assim.

Um sete não é nada mal, podia ficar, sem exagero algum, satisfeito. Passado com 'resultado azul' em uma fase turbulenta como o ensino médio; tudo certo.

Terceiro horário e pensando, pensando em uma forma de conseguir pontos extras! Sempre gostei de ter algo que me prevenisse no futuro, ninguém sabe quando o conteúdo aplicado em uma prova é mais complexo; fins de ano poderiam ser penosos sem cobertura. Não haveria aulas de Português ou Literatura? Era o que parecia: uma apresentação na oitava série reunirá alunos e professores, então, sem aulas para esta e ensino médio.

Logo após o término do intervalo (ou como prefiro chamar, recreio) fomos para a sala/auditório. Não que lá fosse grande o suficiente para comportar todos os estudantes, porém, era o que dispunham. Sentamo-nos, e, Qual apresentação era aquela? Inicialmente achei ser um seminário do ensino fundamental.

De tempos em tempos assistíamos uma sofrível apresentação que teria algum conteúdo se soubessem o que falavam; mesmo para se ler uma folha de papel é preciso alguma prática. Falantes se tornam tímidos; o tímido se quer praticam contato visual; brincalhões, mesmo que em pouco tempo, ficam sérios; professores se transformam em mestres e assim segue.

Fiquei surpreso com a apresentação. Na verdade, de nada tinha a ver os alunos da minha escola, mas sim da vizinha, uma estadual. O primeiro ano havia bolado um seminário longo, instruindo os jovens a ficar longe das drogas (lícitas e ilícitas). Partindo da teoria para a prática: uma encenação, que, hoje me lembro do quão popular era, mesmo os que não concordavam com uma apresentação formal concordavam com essas 'pecinhas'. Curioso e ridículo; já que ninguém passava uma mensagem em relação ao tópico trabalhado, talvez a ideia estivesse oculta, escondida no mesmo lugar que a alma artística daquela geração que optava pelo jeito difícil, tosco e cômico (ao menos um ponto positivo).

Como não é de meu feitio, procuro o assento mais próximo da saído, simplesmente por ser perto da chegada; estava na primeira fila. Ouvi e recolhi informações valiosas, pesquisa profunda, detalhista. Falavam desde barbitúricos a psicodélicos, efeitos causados e consequências póstumas ao vício, este último ponto foi bem claro, falaram com tamanha clareza, que, se alguns tivessem escrúpulos parariam de beber uísque e outras bebidas destiladas que são tão famosas; os adolescentes as adoram.

A segunda parte talvez não me agradado, fora um teatrinho.

Escrever que me lembro da encenação toda seria uma grande mentira, lembro-me do fragmento que definiria a apresentação: Moderno. Sim, moderno. Com toda a leveza de movimentos, movimentos dançantes em parte dos ''amigos e parentes do viciado'' em contraste com os cambaleantes passos do ''viciado''.

As risadas dos que assistiam o contentamento dos que dedicaram semanas em uma apresentação, e que, no fim, parecia que tudo correra bem.

A diretora da escola estadual estava ali. Só havia percebido isso no fim. Além dela, professores que para mim eram estranhos, estavam dando assistência aos que dela necessitavam. A diretora em um momento pregou o microfone e deu o seguinte anúncio:

- A apresentação da Escola Estadual... Está quase no fim e pedimos que algum aluno, se possível, falasse o que havia aprendido com o seminário.

Silêncio. Ela ficara no vácuo. Faltava ainda algum tempo até o término definitivo, por tanto, era certo que alguém apareceria. Os militantes prosseguiram sem interrupção durante poucos quinze minutos e a diretora indagou novamente:

- Bem, estamos no fim do seminário, agradecemos a diretora T... E aos que estão aqui presentes. Queria pedir a participação de algum aluno que queira algo que aprendeu com a apresentação.

Novamente, silêncio. Mas eis que sai um popular aluno do terceiro ano. Um concluinte conversador, e esse adjetivo eram conhecidos por todos os professores e alunos. Bastou que pegasse no microfone e mostrasse o que havia aprendido em duas horas e meia. Estava calma, diria até que estava solto, como um calouro num programa de jovens talentos da televisão. Suas palavras foram rápidas, talvez só tenha percebido o número de pessoas que ali estavam quando migrou para frente delas.

Quando o pré-vestibulando se retirou, era perceptível um buraco, alguém mais teria de ir lá preencher a fissura.

Enquanto se passava tudo isso, no momento em que o terceiranista começava a falar, me dirigi até a minha professora de Gramática e perguntei em descrição:

- Professora, procura algum aluno que fale o que entendeu sobre drogas e suas causas, e eu posso falar, mas sob uma condição.

Sabia que estava forçando; impondo condições para realizar um pedido, umas poucas palavras.

Ela perguntou:

- Qual condição?

Percebi interesse em seus olhos, certa inclinação que me era favorável. Respondi:

- Se for adicionado dois pontos a nota da última prova, eu falo.

Instantaneamente, ela respondeu:

- Tudo bem.

- Então, tudo bem?- não podia acreditar, nem mesmo hoje eu acredito.

- Claro, pode falar.

- A senhora está brincando?- indaguei incrédulo, mas com uma semente de felicidade que estava brotando em meu ser.

- Você já me ouviu brincar? Pode falar. - Me respondera com um sorriso enquanto falara. Sabia que eu era competente o suficiente para não decepcioná-la e ser merecedor dos pontos requisitado. Ambos sairíamos felizes.

Levantei-me e peguei o microfone. Troquei rápidas palavras com a diretora desconhecida e ela se mostrou surpresa. Já havia mirado em minha direção, provavelmente sua atenção fora atraída pelos meus cabelos, mais longos que o normal, começando a bater nos ombros, e, uma segunda vez enquanto eu escrevia um pequeno relatório: requisito obrigatório (não um relatório, bastava poucas linhas, uma frase servia).

Disse que iria falar. Mostrava segurança, tranquilidade, características opostas aos acanhados e cabisbaixos colegas de escola que normalmente eram tão falantes e extrovertidos. Ela parecia estar satisfeita e fez seu último anuncio:

-O aluno C... Irá dar algumas palavras. Só estava o esperando. No pequeno relatório que pedimos, ele já escrevia meia folha, e parecia não parar.

Deu algumas risadas junto daqueles que próximo estavam. Ao entrar na posição correta, indicada por um professor calvo, de óculos, ele pegou algo que estava atrás de uma mesinha usada para apoiar o projetor responsável por apresentar um vídeo que preenchera a apresentação. O que ele pegara fora uma câmera digital.

Dizer que esperava por aquilo seria outra mentira; em todo aquele tempo nada havia sido filmado, exceto eu, eu seria.

Tudo bem, isso não me deixou nervoso, olhar para o número de pessoas que ali me olhavam é que me espantou. Sem problemas, só precisava falar, defender um opinião: aquilo que fazia quase todos os dias. Abri a boca para um 'boa tarde’, e percebi que minha voz estava fraca; o microfone amplificava uma voz fina, de criança. Talvez ninguém percebera (assim esperava), tomei coragem e falei com alguma firmeza, extrai essa coragem não sei de onde, sei que era algo mais forte que eu, eram os dois pontos.

O que eu disse? Também não me lembro. Segurei o microfone com as duas mãos; olhei para um ponto fixo, dando a impressão que olhava para alguém da plateia; procurei em minha mente os termos mais concretos e definitivos que mostrasse certo conteúdo intelectual (que na verdade era para compensar a falta de desenvoltura). Travei uma ou duas palavras, tendo depois de curtos intermináveis segundos as orações completas. Devo ter demorado um pouco mais que o meu antecessor terceiranista e mais nervoso que este.

Aplausos e logo em seguida, a retirada.

A diretora me cumprimentou, ambas, a de minha escola que me fitou com olhos concisos e parecei que ficara contente; a segunda agradeceu minha participação, parecia ter leve admiração transparecendo em seu semblante. Confirmei (como se precisasse) com a mestra de gramática o nosso acordo, e ela, me respondera que iria cumprir o combinado.

Já deviam ser exatas dezessete horas e tudo estava bem.

Ao tomar o caminho de casa, pensei em como consegui agarrar uma oportunidade que me assegurou certa segurança, sem falar da sensação, a sensação cantada pelo The Who no Tommy, a estranha sensação de falar para aquele quase infinito número de pessoas que brotavam em minha imaginação, cada vez maior sempre que rememorava.

Ferreira Lima
Enviado por Ferreira Lima em 29/08/2013
Código do texto: T4457811
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