Uma história antiga
Mariana fechou os olhos com preguiça e, com um dos pés, impulsionou a rede.Era bom ficar ali, de lá pra cá, de cá pra lá, como um pêndulo.A brisa da tarde batia, suavemente, no seu rosto sem viço.Rosto de velha!Quase dava para sentir as rugas tecendo renda na sua pele flácida.Renda sem graça, muito diferente das lindas mantilhas da sua mocidade.O que lhe adiantava agora a tão falada experiência de vida, a sabedoria acumulada?Nada disso lhe traria de volta o antigo frescor de suas faces.Que caminhos percorridos roubaram o brilho e a alegria da sua vida?
O suave balanço das rede foi parando aos poucos e, com o pé calçado na sua velha chinela de veludo bordado, ela deu um novo impulso.O embalo tranquilo a fazia pensar.As suas mãos, pela posição forçada foram ficando dormentes, e, ela olhou, tristemente, às suas mãos de veias grossas e arroxeadas, pensando que é por elas que se conhece a idade de uma pessoa.As nossas mãos são as verdadeiras delatoras do tempo.Os dedos meios tortos , tambem não deixam mentir.Onde ficaram suas lindas mãos de pianista?Quantas sonatas, polcas e valsas elas tocaram com maestria?Como eram
enérgicas executando a Marcha Fúnebre de Chopin!Na verdade essa era uma das suas peças preferidas.Em casa, comentavam, a boca pequena,que ela era mórbida.Casos tristes ou tenebrosos a deixavam excitadas, querendo saber de todos os detalhes.Se ela ainda pudesse tocar o seu piano, escolheria o mesmo repertório do passado, infelizmente, os dedos meios duros , n~]ao lhe permitiam passar horas ao piano, como antes.Tinha noção, porem, que o pessoal da casa, no fundo dos seus corações, agradeciam o silêncio forçado do piano, que, por consideração a ela, continuava encostado em uma das paredes da sala de visitas, um trambolho, destoando da nova decoração,se ainda fosse um lindo piano de calda seria melhor.
As teclas de marfim, cobertas com uma tira de feltro bordada, por ela mesma, iam ficando, cada vez mais amareladas, isso porem, não lhe importava, pois, até os deus dentes , tambem, cada ano amarelavam mais um pouco.O piano e os seus dentes , eram os seus amigos fieis, todos unidos em uma mesma saudades.No meio dos seus pensamentos, ela abriu os olhos e reparou na copa florida do Ipê , que sustentava uma das extremidades da rede.Pétalas soltas iam caindo como borboletas esvoaçantes, e, as flores roxas iam se aninhando nos seus cabelos e nas dobras da rede.Quando ela morresse queria ir assim, cobertas de flores roxas , como o manto de N.S. das Dores.Ela sempre fora assim , adorava as comparações tristes e dramáticas.O pólen das flores afez espirrar alto, e, algumas galinhas que ciscavam por perto, assustadas, se espalharam alvoroçadas, abrindo as asas em vôos rasantes.Essa simulação de vôo, fez ela pensar que, na sua vida nunca conseguira voar alto, sempre estivera, como aquelas aves, presa a terra.
Horizonte estreito, sem perspectivas.O que , realmente, desejara para si?Muito pouco.Covardia e inércia foram fatores preponderantes na sua vida seca.Claro que vida é sempre vida, coração batendo , sangue correndo, todos o seu corpo trabalhando dentro dos seus limites.Manhãs, tardes, noites.Coisas imutáveis a espera do rumo que ela tomaria para cumprir o seu destino.Livre arbítrio.Ela porem, nada desejou além do marasmo em que sempre vivera.Todos os dias a mesma rotina.Pequenas manias que, através dos anos, tornaram-se doentias , assim como, todas as manhãs, virar sua pequena ampulheta e ficar olhando a areia verde escorrer até o fim, dando então o "sinal verde! de levantar e enfrentar a vida.Coisas de velha tonta!
O que fizera de sua vida?Melhor, o que não fizera!Dizem que o cavalo da felicidade passa arreado só uma vez para cada pessoa, mas, ela sabe que deixou ele passar, muitas vezes.Quantas tarde bonitas , como a que estava usufruindo, o moço bonito, sonhado e esperado,passou pela sua janela e, levantou a mão, batendo de leve na aba do chapéu, discreto, esperando um sorriso, um gesto de aceitação, que nunca veio, e, foram tantas as passadas inúteis que, nunca mais ele voltou.Agora, se ela pudesse, pensando bem forte, voltar aqueles tempos iria sorrir, chamar, implorar que a felicidade ficasse com ela.e tudo se tornaria realidade, seria outra mulher que hoje estaria se embalando naquela rede, mesmo que já estivesse só, mas, teria vivido, amado, se tornado uma verdadeira mulher, agora, só lhe restava o embalo da sua velha rede, assim, como um útero macio, de onde não poderia jamais renascer.
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