A Trombose
Tomava chá de tília, comia biscoitos de manteiga e via a novela das seis. Como estava calor despira-se e, assim, só, de colete, acompanhava o movimento do ventilador para usufruir de mais conforto. Foi então que aconteceu. Soou alto o ruído da bofetada no rosto da moça da história e o ecrã gigante que comprara recentemente, transmitiu, com fidelidade forjada, o tom rosáceo da face da jovem, o sangue, vivo, a correr-lhe pelo nariz. Nesse exato momento, dizia, o seu braço direito ficou pesado. Como se todo ele fosse de chumbo. Começava a senti-lo sem função, quase morto. Um formigueiro corria-lhe a ponta dos dedos e Gabriela inferiu que, o que se estava a passar no seu corpo idoso poderia ser algo de grave. Vestiu-se como pôde e pediu-me ajuda. Fiz-lhe alguns testes simples, acalmei-a, e fomos para o Hospital. No caminho, contou-me a sua história. A miséria envergonhada em Portugal, a ida para Paris, a vida toda a funcionar como porteira de um prédio no centro da cidade. Não, não falava francês. Entendia-os mas respondia com vocábulos simples, oui, Madame, non Monsieur. Cumpridas décadas deste ofício, de prisão ao lugar, envelhecida, regressara à aldeia. Tudo lhe era estranho. Já ninguém vivia como dantes e ela nada percebia dos jeitos de agora. Viera, então, para Lisboa. Comprara a casa. Perdera o marido. O filho, abusando da sua credulidade, retira-lhe todas as economias e…desaparecera. Depois que a internaram vim, a seu pedido, fechar as luzes, apagar as lamparinas que ardiam junto a quatro imagens da Senhora de Fátima e uma de Sto António, limpar o frigorífico e regar o jardim. Trouxe o gato comigo. Logo vou, na hora da visita, saber se a trombose manteve os estragos ou se Deus, vendo a sua fé, acedeu em conceder-lhe mais um tempo.