A Hora Implacável
Um dia o encontro é inevitável. Enfrentamo-nos. Eu e a minha imagem. Eu e a ideia que tenho de mim próprio. Eu como avaliador independente do que aconteceu comigo durante estes anos todos e ele, o que fica no reflexo, irónico e desafiador, tímido e assustado, a olhar-me. Desta vez, reúno toda a coragem e, olhando-me de leve pelo espelho penso: Estás velho, companheiro. Penso isto reparando no cabelo mais branco, mais ralo, mais fino. Penso isto por causa dos vincos que saem das asas do nariz, das rugas à volta dos olhos, da barbela que a barba já não disfarça, das pálpebras amparadas pelas pestanas. Sorrio e a imagem não melhora. Muda, apenas. De ligeiramente irónica, tímida, desafiadora e assustada a um tempo, amacia-se, cobarde, tenta a simpatia. Penso: Estás velho, companheiro, mas és um tipo simpático. Ainda tens alguma saúde, ainda tens prazer na vida. Como és guloso, velhadas! Como ainda gostas de olhar para a juventude, de apreciar um bom jogo de ancas, um rosto alegre, novo e bonito. Como, amigão, ainda te pula o pé para a dança, como gostas de rir com uma qualquer piada, como, sensual e devasso, ainda imaginas orgias, ainda pensas que, felizmente, ainda há quem goste de gente de mais idade. Insulto-te em pensamento e tu respondes com agressividade mesmo sem palavras. Não vamos a lugar algum com este diálogo, monólogo, solilóquio! Fica por aí na tua idade e finge que não me conheces. Vou fazer o mesmo e vou esquecer que te olhei, hoje, com olhos de ver. Encolhemos ambos os ombros e eu tento rir-me para não ver os teus olhos encherem-se de lágrimas.