O Curandeiro
A olhar para nada é que ele adivinhava tudo. Parecia que o seu espírito saia da magreza do corpo e se perdia pela lonjura que começava, justamente, onde a minha tinha o seu limite. Eu ainda via o recorte azulado da serra a desaparecer num cinzento leve, quase branco. Daí para cá, nasciam árvores mínimas, mil caminhos a escarificar a terra, os monólitos a crescer em cor e presença e os arbustos a beirar os toscos degraus que era preciso galgar para aqui chegar. Já não sei há quanto tempo troquei com ele as únicas falas mas o sol ainda mordia a minha pele exposta nos braços, pernas e pés. Agora já não há calor e o dia prepara-se para morrer em violáceos tons que alteram a visão do mundo. Foi então que ele disse: “Não vieste preocupado com a tua mulher ou o amor. Não vieste perguntar nada. Vieste porque ela quis que fosse eu a dizer-te a sua versão do caminho. Sei porque a vi sentada à tua espera e não porque o tenha adivinhado. Muitas das minhas conclusões recolho-as da ordem com que penso. Outras resultam do olhar atento com que analiso as pessoas, da atenção profunda aos pormenores do que me dizem, da minha experiência de muitos anos, guerras, vivências. O teu caso é típico. Desististe de a convencer daquilo em que acreditas e queres a paz. Estás certo. Que venha ela consultar-me amanhã e eu a farei cuidar de ti com as regras que têm os da tua raça. Verás como, depois disso, só valerão os sentimentos que vos unem”. Estendi-lhe os frutos que trazia. O dinheiro, disse-me, recebê-lo-ia, depois, das mãos dela. Fazia parte da crença: os bons conselhos ou se pagam bem ou se esquecem.