O Burro 5ª e última parte

A viagem após Parada, era em estrada plana até estrada principal e dali até São Miguel era sempre a descer. Podiam subir para a boleia sem sobrecarregar o animal, o que fizeram sem incidentes, embora sem diálogo entre ambos, chegaram por fim a São Miguel.

- Já estava preocupado pela demora, o que aconteceu? – Interrogou o patrão.

- Então!... nós tivemos de parar várias vezes na subida do rio até Parada por causa da carga.

- E o teu colega Fernando portou-se bem? Não arranjou problemas como é costume?

- Não senhor.

Fernando de testa franzida, assistia sem dizer nada ao interrogatório que o patrão fazia ao António.

- Olhe se não fosse ele, se calhar nem à noite cá estaria. Fartou-se de ajudar a empurrar a carroça. Vossemecê já viu a carga que trazemos?

- Está bem, enquanto mando descarregar, vão até à adega merendar e depois levem a bicicleta e entreguem o burro ao Sr. Anselmo. Se ele não estiver lá, façam com vos explicou de manhã.

- Sim senhor. – Responderam os dois rapazes.

Na adega tinham uma omeleta de chouriço e broa á espera deles.

- Desculpa-me de ter chamado judas, mas estava enervado. - Disse o Fernando de mão estendida que o António apertou com força de amigo.

- O que lá vai, lá vai, vamos é atacar a omeleta antes que arrefeça.

- Com que então, o menino António saiu-me cá um aldrabilhas do caraças. Mas obrigado por isso mesmo.

- Ora deixa te disso. Ai é verdade! Os nossos farnéis?

Com a boca cheia, Fernando não respondeu á primeira.

- Não te preocupes que estão bem guardados na caixa que a carroça tem por baixo.

Depois de merendarem, dirigiram-se para Sabugosa entregar o animal. O jerico com trote alegre de carroça vazia em estrada plana, competia com a alegria dos dois rapazes, sanadas que foram as dúvidas acerca da verdadeira camaradagem.

Em Sabugosa, dirigiram-se a casa do Sr. Anselmo, após baterem na aldrava da porta e não obterem resposta, dirigiram-se para o pátio nas traseiras, onde concluíram que não estava em casa. Com ambas as portas escancaradas entraram com a carroça.

O pátio cheio de mato fresco tinha umas boas dimensões. Ao fundo um grande alpendre com apetrechos da lavoura. Ao lado do alpendre, uma loja com manjedoura onde comia e dormia o animal. Sobrava aquele pátio enorme para o bicho apanhar sol. Desatrelaram a carroça que arrumaram a um canto e começaram a tirar os arreios quando António alvitrou:

- E se gente desse uma volta em cima do burro?

- Estava a pensar nisso mesmo.

- Então não tires a cabeçada que é para a gente o poder conduzir com as rédeas.

António feliz da vida, aguardava com ansiedade que o colega acabasse, para finalmente concretizar a sua fantasia de montar não um alazão, mas não ficava muito longe disso, a família era a mesma, mais pequeno e mais lento é certo, porém, dava para cavalgar desde que o homem o desbastasse. Já tinha cavalgado em carneiros, mas isso era na brincadeira.

Com o Fernando a segurar o burro, António subiu para o dorso do jerico. Agarrou nas rédeas e com o Fernando com a mão na cabeçada deu uma volta pelo pátio

- Agora deixa-o só comigo. – Disse o António cheio de confiança.

O animal sem comando, só com aquele intruso no lombo, deu quatro passadas aceleradas e estacou de repente, atirando o inábil cavaleiro para cima de um monte de palha de centeio.

A rir como um perdido, o Fernando disse:

- Agora é a minha vez, observa e aprende que eu não duro sempre.

Com a cabeça ainda cheia de palha o António segurou o burro para o colega montar.

- Queres que dê uma volta pelo pátio com ele seguro.

- Não, quando eu disser larga-o. Vai, agora!

O burro desta vez não correu para depois estacar. Deu uns passos vagarosos em volta do pátio como se tivesse aceitado o Fernando como cavaleiro.

- Como vês isto é assim, quem sabe, sab…

Fernando não teve tempo de concluir, pois todo no ar, impulsionado pelo burro com o dorso todo curvado, saltava e dava coices piores que um potro por domar. O Fernando no meio daquele tornado, saltou da garupa para as traseiras, em três saltos consecutivos, de cada vez que aterrava, era novamente impulsionado para cima, como se fosse uma bola aos saltos em cima do lombo do animal, até que finalmente aterrou no meio do pátio, amortecido na queda pelo mato fresco.

Foi a vez do António rir, após ter verificado que o único ferimento do Fernando foi no seu orgulho de cavaleiro.

- Isto em questão de trambolhões quem sabe, sabe. - Gargalhava o António ajudando o colega a levantar-se.

Arrumaram o animal, pegaram nas sacas dos farnéis e com o António a pedalar o Fernando sentado atrás no suporte, lá foram direitos a casa.

- Pára aí depressa.

- O que é que foi agora?.. Olha os costilos. – Comenta o António a rir.

- Não é nada disso meu parvo, é que ali é um bom local de a gente finalmente comer o farnel. O que é que dizes?

- O que eu digo? É que é a coisa mais inteligente que ouvi hoje. Ah, ah, ah, e nada de burros por uns tempos. Ah, ah, ah.

As nossas vidas seguiram rumos diferentes, eu dois anos depois, vim para lisboa. Nas minhas visitas a S. Miguel, quis o destino que nunca mais tivesse encontrado o Fernando.

Recentemente, eu já avô, resolvi passar a páscoa, na minha aldeia e por sorte encontro o Fernando. Depois de matarmos saudades e recordar peripécias da nossa infância, convidou-me para conhecer a sua casa, o que fiz com agrado.

- António, apresento-te a minha esposa, Ana Rita, que penso que conheces.

- Minha senhora! Peço desculpa pela minha falta de memória, mas não me lembro da senhora. É de cá de S. Miguel?

- Não, não sou. – Respondeu sorrindo, o que me deixou confuso.

- Não é de cá não senhor. Não te lembras da Ritinha?

- Ó Fernando, como é que queres que eu conheça a tua esposa se não é de cá e nós não nos vemos desde miúdos?

- Lembras, lembras, de certeza. É a Ritinha, a filha do senhor Monteiro, de Silgueiros, quando fomos com o burro buscar milho para o Gonçalo, que era o nosso patrão na altura.

De súbito, como de um filme, lembrei-me das peripécias daquele dia.

- Agora sim! Claro que me lembro. Já vi que vocês ficaram mesmo apanhados a partir daquela altura. – Respondi, sorrindo.

- Deus assim o quis. – Responde um pouco ruborizada, a esposa do Fernando.

Três crianças entraram de repente na sala. – São os meus netos. – Diz o Fernando.

Sem conseguir evitar, dei uma gargalhada, para surpresa dos meus amigos.

- Afinal não ficaste capado, com aquela história do costilo.

Foi a vez do Fernando, soltar uma grande risada, com a mulher olhar para nós, sem saber ao certo o motivo de tanta exultação, porém educadamente sorria, mas se calhar a pensar que a causa de tamanho contentamento, seria efeito de termos visitado primeiro a adega.

António Correia

Lorde
Enviado por Lorde em 10/08/2013
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