O Burro 4ª Parte

O animal caminhava com menos alegria agora, talvez pela carga e o calor que fazia ou pela pequena subida da estrada. No cimo da ladeira, via-se a descida serpenteada que dava acesso à ponte e a seguir à ponte, uma subida maior até Parada de Gonta. António aconchegou o travão com duas voltas na pequena manivela, para ajudar o animal na descida. A dez metros antes da ponte via-se um desvio que dava acesso àquelas terras férteis, a avaliar pelo milho cultivado, por onde o rio Pavia corria, para lá António dirigiu a carroça. Fernando saiu do seu mutismo.

- Para onde é que vais pá?..

- Pôr o animal naquela sombra para descansar.

- Só?..

- E dar um mergulho no açude que vimos há bocado.

- Viva!.. Viva. - Gritou o Fernando, saltando da carroça ainda em andamento.

António prendeu as rédeas a uma pequena árvore e correu atrás dele para o açude. À vista daquela extensão de água os dois rapazes esqueceram tudo, foi só tirar as roupas e saltar para a água. Nadaram e brincaram, no desafio de quem aguentava mais tempo a nadar submerso. Por fim satisfeitos, saíram e trataram de se vestir.

- Não te dói? – Perguntou António, apontando para as partes íntimas do Fernando.

- Não, porquê?

- É que ainda está vermelho e nota-se o vergão do costilo.

- Pois é! Será que aquela porcaria capou-me? Se calhar não poderei ter filhos. – Comenta o Fernando preocupado.

- És ‘muita’ tolo!.. Só se fosses maninho de nascença.

- Tens a certeza?

. - Sim!...Até ouvi dizer que o Maneta só tem um e tem filhos que nunca mais acaba.

- Então achas que não há perigo?

- Claro que não. – Respondeu convicto o António.

Já vestidos, os rapazes dirigiram-se para a carroça.

- Já reparaste que não se vê vivalma. - Comenta o António.

- Ó meu nabo, és mesmo tanso! Então não vês que é hora da sesta? Onde é querias que as pessoas estivessem com este calor?

António não respondeu com um baque que sentiu no coração, ao não avistar a carroça com o animal. Com uma mão no ombro do Fernando e a outra apontada na direcção da árvore onde tinha prendido o burro, tremia sem pronunciar palavra. Lívido e estático durante segundos, conseguiu por fim articular, embora a gaguejar, umas palavras.

- Rou…rouba..baram a carroça.

Atarantados correram para a estrada. António retrocedeu a correr até ao cimo da ladeira. Daí podia ver uma grande parte da estrada percorrida, porém não viu quaisquer vestígios. Desanimado, veio ao encontro do colega que tal como ele, tinha até subido a um pinheiro, mas nada. Sem saberem já o que fazer, regressaram até ao local onde tinham prendido animal.

Fernando de nariz no chão perscrutava os rastos das rodas da carroça. De repente o rosto iluminou-se-lhe e chamou pelo António.

- Anda cá ver… Olha, isto parecem ser os rastos da carroça, estão por cima destes mais largos que devem ser de carro de bois.

- Pois é, mas os rastos seguem para ali para as terras.

A correr os rapazes dirigiram-se para lá. A seguir a uma pequena curva, lá estava a carroça com o jumento, a fazer uma razia no milho, logo na entrada do terreno. À vista do milho destroçado, os rapazes trataram de sair com o animal dali o mais rápido possível. António com as rédeas na mão, deu a volta ao animal, para desaparecer daquele local, antes que aparecesse alguém. Fernando com uma vergasta, ia tocando o animal com mais brusquidão do que o necessário. Cruzaram a ponte num ritmo acelerado e iniciaram a subida que os levaria até Parada. O andamento era agora mais lento, fruto da carga, apesar do incentivo dos rapazes que caminhavam ao lado. Já não se vislumbrava o rio e os rapazes ofegantes e encharcados em suor, suspiraram por fim.

- Que susto a gente apanhou, não foi Fernando?

- Chiça, pá! Foi mais que susto, foi um cagaço do caraças. Mas como é que prendeste o burro, para ele se soltar?

- Enrolei as rédeas num pinheiro, como se vê nos filmes.

- TU, FIZESTE O QUÊ?.. - Gritou o Fernando, com o rosto vermelho de raiva. – Mas tu és maluco ou quê? Como nos filmes!.. Mas tu pensas que isto é alguma coboiada. O que fizeste foi prender o bandido e dar-lhe a chave a guardar. Sabes uma coisa!.. Dá-me a impressão que não deves ter os cinco alqueires bem medidos.

António de cabeça baixa, não respondia. Comprometido pela asneira que fizera, compreendia a razão do colega devido ao susto que ambos apanharam, pela incúria ou melhor, pela influência que o cinema exercia sobre os seus treze anos. Embora não estivesse disposto a suportar por muito mais tempo, o azedo e vingativo sermão do colega.

- O que tu precisavas bem sei eu!..

- Mau!.. Ainda não chega?

O tom abespinhado do António persuadiu o Fernando, a dar a reprimenda por concluída.

A subida daquela estrada poeirenta parecia não ter fim. O jumento puxava a carroça com mais dificuldade. António alvitrou que era melhor pararem para o animal descansar. Fernando anuiu com um aceno de cabeça. Numa curva larga, um pinheiro manso proporcionava uma sombra convidativa, para o animal poder descansar. Ali encostaram a carroça e aproveitaram para se estenderem ao comprido em cima da caruma, da pequena encosta da berma da estrada. De papo p’ro ar com as mãos de baixo da cabeça, ouviam o som das cigarras na sua constante cantilena de apelo namoradeiro às fêmeas. Fernando irrequieto disse.

- Tu ficas aqui que eu vou dar uma volta.

António embalado pelo som que os insectos faziam, acabou por adormecer. Subitamente acordou com uma dor no meio do nariz. Sobressaltado ergueu-se e com o olhar tentou descobrir o Fernando, pois só podia ser ele que lhe tinha atirado alguma pedrita. Com a mão a coçar o nariz esquadrinhou os arredores, mas nada daquele, alma danada nem do riso inevitável sempre que lhe pregava alguma marosca. Voltou para a sombra do pinheiro e tornou-se a deitar. Espantado o sono, contemplava agora a magnífica copa daquela árvore, provavelmente com mais de cem anos. Ainda tinha muitas pinhas agarradas aos ramos, abertas, iam perdendo os pinhões ao longo do verão, pela acção do calor.

- É isso!.. Foi um pinhão que me caiu no nariz. – Arrazoou em voz alta, como se tivesse alguém a ouvi-lo.

Sorridente pelo desemaranhar do enigma da dor no nariz, lembrou-se da história do lavrador que deitado à sombra de um grande carvalho, questionava a natureza, sobre o tamanho dos seus frutos. «Então uma árvore tão alta e tão robusta como esta, capaz de aguentar as mais fortes ventanias e no entanto produz frutos tão pequenos que para encher uma mão, é preciso umas dez bolotas. E aqui mesmo aos meus pés, rastejando pelo chão, caules pouco mais grossos que um dedo com abóboras enormes, por vezes com dez e mais quilos. Não está certo, não é proporcional, nisto, a natureza está errada». Assim meditava o lavrador. Quando uma pequena brisa fez cair uma bolota que lhe acertou na cabeça, apesar de ser um fruto pequeno, com a velocidade adquirida pela altura, magoou o lavrador. Aí o lavrador ainda a coçar a cabeça comentou: «Chiça!.. Afinal a natureza está certa. Olha se o carvalho desse bolotas do tamanho das abóboras, esta hora estava morto de certeza. Libra…»

Quando Fernando chegou junto do colega este ainda sorria.

- Então como é que é, vamos andando?

- Vamos.

Com o animal já descansado, calculavam que era coisa para mais uma hora de caminho.

- Arre burro. – Gritava o António agarrado à cabeçada do animal, perante a recusa em andar. Enquanto o Fernando atrás fazia estalar as rédeas no lombo do jumento. O animal por uma razão que os rapazes não compreendiam nem um músculo mexia, apesar dos berros de ambos, de incitamento. Fernando exasperado, chicoteava o bicho de forma desapiedada, tendo como resultado uns zurros do animal que arregaçava as ventas e mostrava os dentes em sinal de protesto.

- Ai não andas? Então já vais como é que é. – E bufando de raiva, começa aos pontapés às patas do animal.

António agarrado com as duas mãos à cabeçada, tentava desesperadamente que o burro desse sinais de dar um primeiro passo, mas qual quê, com as patas da frente fazia força ao contrário, pareciam âncoras fundeadas.

Gritou enfurecido, no entanto, reparou na maneira bruta como Fernando pontapeava o bicho e deu um grito nos ouvidos do colega.

- Pára, pára! Mas tu estás maluco, ou quê? Não vês que podes arranjar algum problema às patas do burro e depois o Sr. Anselmo salta em cima de nós.

A contra gosto, Fernando parou resfolgando, impotente perante a teimosia do jumento. Sem saber o que fazer, encostou-se à barreira da estrada observando o António que inspeccionava as patas do animal.

- Não parece ferido! – Exclamou aliviado o António.

- Mas o que é que fazemos agora?

- Sei lá, tu é que és o responsável. Foi a ti que o patrão confiou o burro, agora desenrasca-te.

- Ai é assim?

- Ai pois é. Não és tu o mais responsável, o menino querido do patrão e o mais esperto, então agora mostra-me a tua esperteza e põe a carroça andar.

- Olha pelo menos não me pus aos pontapés ao burro…ai se o Sr. Anselmo soubesse!..

Fernando ficou lívido perante a suposta ameaça e deu um empurrão no colega ao tempo que dizia:

- Tu não te atrevas a ser acusa Cristos, judas do diabo.

Apanhado desprevenido pelo empurrão, António desequilibrou-se estatelando-se contra a barreira. Em fracções de segundos, António transformou-se, de surpreso pelo empurrão, à raiva que dele se apossou perante a ofensa. Tomado de uma fúria inexplicável, atirou-se ao colega abraçando-lhe os joelhos fazendo tombar o Fernando. No chão os dois, ora por cima ora por baixo aos rebolões, resfolegando como gatos assanhados. Naquele rebolar Fernando bateu com a cabeça numa pedra, deixando-o tonto e sem forças. Esse momento é aproveitado pelo António, para em cima dele, agarrar-lhe as golas da camisa, sacudindo-o gritando.

- Não sou nenhum judas, ouvistes!.. Não sou nenhum…- as lágrimas romperam-lhe subitamente ao ver o desfalecimento do colega. Naquele choro convulsivo, de joelhos no chão nem se apercebeu que alguém ajudava o Fernando a levantar-se.

Os dois cantoneiros responsáveis por aquela estrada, ouviram um burro a zurrar e gritos e berros que pareciam de rapazolas a avaliar pelo timbre. Não ligaram muito, entretidos nos seus afazeres de reparar a estrada, até estranharem que já deveriam ter passado por eles.

- Ó Matos, não achas melhor irmos ver a origem daquele banzé?

- Sim, é melhor, é.

Percorreram cerca de cento e cinquenta metros, quando entraram na curva larga, viram uma carroça carregada de sacos e envolvidos em poeira dois rapazes engalfinhados rolavam no chão, numa luta sem se vislumbrar vencido ou vencedor. De súbito um deles sobe para cima do outro agarra-o pelo colarinho e grita qualquer coisa que não conseguiram decifrar. Quando finalmente, chegaram junto dos rapazes, um prostrado de joelhos chorava, o outro tentava-se levantar, com as mãos a coçar a cabeça.

Os cantoneiros verificaram a cabeça do Fernando e não viram sangue apesar do galo que tinha. Ajudaram a levantar o António que limpava com as mangas da camisola as lágrimas teimosas.

- Agora, contem-nos cá a razão de vocês andarem à bulha.

O Fernando já mais recomposto, contou que tudo começou com uma discussão entre os dois, porque o burro resolveu não andar apesar de ter descansado bastante tempo. E depois de uma troca de palavras azedas, deu no que deu.

- Bom! Ó Matos, tu ainda tens o teu jerico?

- Tenho porquê?

- Para ver porque é este animal não quer andar.

- Isso é fácil, porque eu conheço-lhes as manhas todas, mas eles têm que fazer as pazes, primeiro.

- Vá lá, de que é que estão à espera?

O Fernando de mão estendida dirigiu-se ao António que fez o mesmo, se bem que o aperto de mão pouco convincente, não passou despercebido aos cantoneiros.

O Matos depois de destravar a carroça, deu dois berros ao burro que o animal surpreendido por aquele vozeirão arrancou, como se levasse a carroça vazia.

- Se ele parar, gritem-lhe com voz grossa, que ele é manhoso.

Os rapazes, com alma nova, lá seguiram estrada acima. Os cantoneiros ficaram a observa-los, até desaparecerem logo a seguir à curva.

- Viste como eles deram o aperto de mão?

- Claro, até parecia que tinham lepra nas mãos, mal se tocaram. Enfim!.. rapazes…rapazes.

Continua

Lorde
Enviado por Lorde em 09/08/2013
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