A última carta

A última carta

O vento frio do inverno insistia em brincar com as finas cortinas do enorme casarão.

Olhava o longo corredor, e incrivelmente, as tábuas que antes eram carregadas de rangidos, e outrora agüentaram pequenos passinhos, grandes corridas e sempre adornadas com tapetes escorregadios , parecia que como nós, haviam adormecido no tempo.

Olhava e pensava nas duas gerações que passaram por ali.

Ah...Como o tempo é um vilão ingrato e passa por nós rápido demais! Tão rápido que não nos damos conta que não teremos este tempo novamente.

Olho para este corredor, com as cortinas esvoaçantes de véu claro, e lembro-me do dia em que compramos esta casa.

Vejo Arnaldo em minha frente, sentado, calado, nem de longe a sombra daquele homem que um dia entrou comigo nos braços correndo por aquele lugar que ousamos um dia chamar de nosso lar.

Arnaldo sempre fora um homem forte, papai dizia que eu havia me casado com um búfalo, agüentava carregar toras inteiras de árvores nos braços, e aliás, com sua força levantava os quatro filhos de uma só vez e essa era uma das brincadeiras que eles mais gostavam, e volta e meia um se machucava. Lembro-me perfeitamente, Arnaldo pegava um pedaço forte de maçaranduba e os 4 pequenos se penduravam, para que ele roda-se com os quatro e ver a brincadeira até que era divertido, quando não aparecia um de cabeça rachada. As risadas ecoavam por toda a chácara.

Arnaldo não tinha muito estudo, estudara somente até aprender a ler para se virar na vida, mas não negava trabalho e ninguém passava a perna nele nas contas, assim , abriu, um armazém, depois outro, depois outro e logo que ficou maior de idade, escolheu a dedo uma moça para se casar. Na verdade, era um dos poucos jovens que aos 25 anos já podia se dar ao luxo de comprar uma casa própria com seu próprio dinheiro em nossa cidade.Aliás, até hoje acho que foi isso que mais atraiu papai na hora em que veio pedir minha mão em casamento, e certamente o que mais atraiu Arnaldo, era saber que eu era uma professora.

Nos conhecemos na quermesse do dia de Santo Antônio, o padroeiro de nossa cidade,Santo Antônio do Jabatão e não tinha dia melhor para se arrumar um noivo.

Eu já tinha 17 anos, já tinha me formado e papai já se preocupava com o tempo que eu ficaria em casa dando despesas. No dia em que nos conhecemos, eu usava um vestido de renda azul, bem bonito, foi amor a primeira vista.

Mas nisso, já se passaram 60 anos, e cá estamos nós dois, um em frente ao outro, entre nós, somente o abismo entre o passado e a lembrança.

As fotografias amareladas nas paredes, mostram entre sorrisos e roupas fora de moda, um tempo que não voltará mais.

Posso afirmar uma coisa, “fomos felizes”, ah...isso fomos, demos aos nossos meninos, tudo o que achávamos que poderíamos dar sem estragá-los, pelo menos achávamos isso né?

Mas a principal exigência da casa, para todos, era o estudo.

“Como nós brigamos com estas crianças para estudarem,não é Arnaldo?”

Em semana de prova, era cada um trancado em um quarto, somente com os cadernos e os livros, a casa, ficava um grande silêncio, lembro uma vez que o mais velho, fugiu para ir no mato ver uma arapuca que havia montado para pegar passarinhos, e quando menos esperava, deu de cara com o pai, que o trouxe pendurado pelas orelhas fazendo pirraça, em dia de prova, não tinha conversa, não tinha moleza, e em nossa casa só aceitávamos as maiores notas. Hoje, nem sei se fizemos o certo.

Todos estudaram muito, para o Arnaldo este era seu maior orgulho, cada um que chegava na universidade, já ganhava logo um automóvel , e quando terminava, uma casa na cidade grande, pois em Santo Antônio do Jabatão não teriam grandes opções na vida.

E para o velho e forte pai, esta era sua grande vitória, 4 filhos, dois meninos e duas meninas, 4 doutores, dois da medicina e dois das leis, a família mais bem falada da cidade, mas, nos demos conta hoje, que na cidade mesmo ,só sobrou os dois velhos, pois os filhos, bateram asas e voaram.

No início, quando o mais velho se mudou era até bom, um foi para a cidade grande, e três ficaram, nos feriados era uma festa, ver os quatro reunidos, depois, foi o segundo, o terceiro, e depois o quarto, as visitas de feriado, começaram a ficar mais raras, viraram visitas de férias, viraram visitas de natais e por fim, veio o tal do celular e nossas visitas foram substituídas por vozes eletrônicas, vindas das grandes capitais.

Como foi difícil para Arnaldo perceber que se acostumaram a ficar longe da gente por tempo demais.

Ensinamos aos meninos a vida inteira a estudarem muito, sem perceber que quem muito estuda também muito trabalha.

Como queria que um deles, viesse em nosso quarto a noite e pedisse um pratinho de mingau de amido de milho , ou desejasse um ovo fritinho com gema mole, de ovo catado no galinheiro.

Os quatro se foram, seguiram seus rumos, se ocuparam demais, seguindo imaginem só... Os nossos conselhos, como puderam um dia achar que sabíamos o que era melhor pra eles?

Arnaldo, imóvel em minha frente, parece sorrir da nossa grande ignorância em achar que a vida se resumia somente em estudos e trabalho.

Engraçado é perceber que seguiram todos os meus conselhos a risca.

Eu na verdade sempre fui dominadora e tagarela.

_” Não tenham filhos cedo!”

_ “Vocês serão doutores”

_ “Não casem com estas roceiras daqui!” Eu aconselhava do alto pódio da minha ignorância, sem saber que assim cortava suas raízes.

Depois, seguindo os próprios extintos de falta de tempo, decidiram simplesmente não serem pais.

As meninas, quando o relógio biológico batia, estavam no exterior fazendo pós- graduação, quando perceberam já era tarde demais.

Os meninos, achando sempre, que um filho atrapalharia a vida, pois, não teriam tempo para educar, para brincar de roda, para ensinar o dever de casa, então é melhor deixar tudo como está.

Pergunto a Arnaldo:

_ Será que fomos tão maus assim?

_ Será que não aprendemos nada da vida?

A casa grande que um dia acolheria os netos nas tardes ensolaradas das férias de verão, não teve suas paredes sujas de lama e de marcas de mãos, ou de grandes sóis rabiscados de caneta.

Hoje, se eu pudesse, ensinaria tudo diferente.

A Laurinha, que gostava tanto de cozinhar e inventar biscoitinhos na cozinha, talvez tivesse sido uma mãe melhor que eu, com mais tempo e paciência para brincadeiras e talvez não tivesse feito como eu fiz, alfabetizando-a aos 4 anos de idade, quando deveria estar se preocupando somente em fazer bonecos de lama. Chegava a dormir com o lápis na mão.

É mas hoje não adianta mais se lamentar....

Arnaldo em seu silêncio parece concordar.

Hoje, nossos filhos, são doutores, criados , independentes. “Ah ,como eu queria que dependessem um pouco apenas de nós, que lembrassem que fui eu quem ensinei um a um a escovar os dentes, de cima para baixo, de cima para baixo, come de boca fechada menino...Olha os modos!”

Ah, quem me dera! Pelo menos não estaríamos aqui né, Arnaldo? , frente a frente com nossa realidade sem ter mais o que mudar.

Minhas mãos trêmulas, escrevem estas humildes, mas últimas linhas, que consigo escrever com a pouca força que resta em minhas mãos, pois minhas pernas, já não me obedecem a dias.

A empregada que cuidava de nós, arrumou emprego melhor, cuidar de dois velhos, deve ser mesmo algo muito chato, Deus me live, mas a danada prometeu dar uma ligada para nossos filhos arrumarem uma outra, tão logo lhes sobrasse algum tempo.

Olho a nossa volta, e me sinto parte da casa, como a mobília, inerte, simplesmente guardando o pó.

Arnaldo, coitado, jaz aqui em minha frente em sua velha cadeira de Jacarandá, sem vida há alguns dias, e eu despeço-me aqui, esperando o ingrato tempo, que desta vez passa devagar, ao me ver contemplar o tempo da morte chegar.

Com tempo infelizmente e amor...

Laura!

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Após 8 dias, os filhos encontraram os pais, já mortos e seu Arnaldo em adiantado estado de decomposição e lamentaram o tempo de espera para a chegada do rabecão!

Izabelle Valladares

Texto Publicado no Livro Palavras sem Fronteiras