De como nascem os heróis
O relógio marcava 17:35, ao passo que o céu, repleto de densas nuvens, já trazia a escuridão da meia noite. As ruas inundadas por enxurradas eram como pequenos rios que, em confluência com as ruas baixas, invadiam as casas causando desassossego aos moradores. O silêncio frágil, intercalado por estrondos de raios e telhas arrancadas, tornou-se a quimera naquela noite.
E foi nesse cenário apocalíptico que este curioso personagem estreou o seu primeiro ato. O dia do seu nascimento foi um grande marco na história da cidade. O espírito tempestuoso desse homem era qual um remanescente da ira da natureza, uma tempestade dentro e fora do ser! Adiante, em sua vida, ele descobriria nisso um dom pouco experimentado: O poder de fazer mudar a realidade sempre que mudasse o seu estado de espírito. Trata-se de um ser tão nobre que nessa história lhe será dada a honra das melhores páginas.
Qualquer um que pronunciasse seu nome seria acometido por uma paz que irradiava de sua feição gentil. Mas, só quem o conhecia realmente sabia o terror de tê-lo em presença. Seus avós atribuíam a personalidade indomável às primeiras impressões que teve do mundo no dia do seu nascimento. Já os seus pais não criam em superstições. Contudo, não podendo com o gênio terrível da criança, viam naquela crença um subterfúgio perfeito para as faltas com a educação do filho.
Nos seus primeiros anos de vida não havia muitos traços para qualquer singularidade. Exceto por uma curiosa intermitência do olhar. A família, vendo aquilo, especulava sobre alguma forma de autismo ainda desconhecida dos médicos. Um dos tios acreditava ser um tipo de inteligência adulta, algo que jamais se manifestaria em criança.
O fato é que, até os seis anos, ele resguardou absolutamente o seu gênio. Raramente fitava os olhares e, quando ocorria, cuidava em não correspondê-los. Não fazia muitas perguntas e tampouco, questão em respondê-las. Era dono de seu mundo! O mais estranho se dava pelas manhãs e fins de tarde, quando, sentado, permanecia imóvel (exceto pelas mãos trêmulas) aparentemente compenetrado no som dos pardais que saiam dentre os telhados. A mãe tinha por hábito ouvir um programa de rádio às cinco da tarde, nunca perdia o programa favorito. Desconhecendo as razões do filho ela sentia uma profunda aflição quando o via naquele aspecto arbóreo. Ele realmente não se movia e ela, pouco intuitiva, nunca supôs que a criança estivesse a contemplar a música, enquanto renunciava aos demais sentidos.
Em verdade, ele sabia bem esconder suas qualidades em meio às estranhezas. E só faria vê-las muitos anos depois, quando, já adolescente, faria terror no colégio, onde supostamente estudava.
Ainda jovem, sua eloquência era tamanha que ninguém podia com ele. Convenceria o diabo se tivesse, com este, quinze minutos. Talvez, fora o próprio quem lhe dera tamanha esperteza. Mas, ele não acreditava em muito. E neste pouco, não havia espaço para mitos e superstições. Para ele, deuses, anjos não mereciam consideração em seus solilóquios. Essa descrença de tudo, mais adiante, lhe seria um estorvo. Pois, teria trocado sua suposta alma em qualquer coisa que lhe entretece num instante. E após um sorriso verdadeiro, nunca mais o teria em seu semblante. Num certo dia, o novo dono daquela alma, beirando da morte, reivindicara o que um dia lhe custou um riso .
Assim começa a vida do homem corpo oco. O que será contado adiante não transcende aos absurdos vistos na TV ou lidos diariamente na internet. Apenas contemple e compreenda até onde puder.
... Continua ...