O Burro 3ª parte

- Ainda falta muito? Perguntou o António mais para quebrar o silêncio reinante e ao mesmo tempo ver como se encontrava o amigo.

- Acho que não. - Respondeu o Fernando.

- Achas que não!.. Homessa, então tu vieste para me ensinares o caminho e não sabes se ainda falta muito ou pouco? Cá para mim, o que tu quiseste foi vir p’ra moina. Não é, "menino Fernando"?

- Já cá vim, sim senhor! – Responde o Fernando pouco convicto por entre dentes.

- Não sejas mentiroso! Que eu já te conheço de ginjeira.

- Olha quem fala, quem te ouvir há-de julgar que és algum santo. Não é "menino António". – Remedou o Fernando.

António não respondeu, ocupado em travar um pouco a carroça à vista do declive acentuado da estrada. Ao fundo via-se uma ponte e um rio ladeado por terras cultivadas. A cor verde do milho contrastava com o brilho das águas represadas pelo açude que se distinguia mais além.

Os dois rapazes, embevecidos pela beleza daquela piscina da natureza, trocaram um olhar de cumplicidade e não foi preciso falar para que o António dissesse:

- ‘Tá’ bem, se a gente se despachar a tempo, damos um mergulho.

Depois de terem passado a ponte o Fernando diz:

- Era o rio Pavia. Isto é para que saibas que eu afinal conheço isto.

- Olha o espertinho!.. Tu leste o nome do rio, na placa em cima da ponte ou pensas que me comes as papas na cabeça.

A resposta veio numa sonora gargalhada que contagiou o António desanuviando o clima, meio crispado entre os dois.

- E agora, deixas-me conduzir o burro?

- Está bem, mas com calma.

Trocaram de lugar. O Fernando com as rédeas dá uma sacudidela em cima do lombo do animal estimulando-o com os, arre burro, arre burro. O animal estimulado apressou o passo.

- Como vês, nada como a autoridade de quem percebe. – Comentou todo ufano o Fernando, perante o andar apressado do animal.

- Está bem, mas não o forces demasiado que ele tem que fazer o caminho de volta.

Finalmente chegaram a Silgueiros. Uma aldeia como tantas outras da Beira Alta, com as suas casas em granito de primeiro andar, a contrastar com outras rebocadas e pintadas, ruas estreitas, fontanários, casas senhoriais, escola primária, igreja e capelas, em tudo mais ou menos como em S. Miguel, na opinião do Fernando.

- Ó senhor!.. Aonde é a casa do Sr. Monteiro?

- Ali, ao virar da esquina…belo animal que vocês têm, sim senhor, belo animal.

Os rapazes mais inchados que perus, como se o burro fosse deles, lá foram à casa do Sr. Monteiro, perseguidos por crianças que corriam ao lado da carroça.

Foram recebidos por uma rapariga, mais ou menos da idade deles que lhes disse que ia chamar o pai. O Sr. Monteiro ao saber ao que vinham, encaminhou-os para o pátio das traseiras da casa, onde mandou dar água e ração ao animal, enquanto carregavam a carroça com sacas de milho.

- Venham cá comer uma bucha. - Convidou o Sr. Monteiro.

- Muito obrigado, nós trazemos far… - António não acabou a frase, perante o empurrão do Fernando que o ia desequilibrando, enquanto este, respondia ao dono da casa.

- Muito obrigado, por acaso já sentimos uma certa larica. O patrão não disse nada, senão tínhamos trazido farnel.

- Mas nós trazemos farnel. - Sussurrou António encostado ao Fernando. Fernando ia dando safanões na manga da camisola do António, enquanto em surdina dizia:

- Cala-te parvo, o nosso, fica pr’a merenda.

Em cima de uma salgadeira, a filha do dono da casa dispusera uma pequena toalha com broa, uma chouriça, azeitonas, um queijo de ovelha e um bocado de presunto. Vendo o pouco à vontade dos rapazes, o Sr. Monteiro deu o exemplo cortando duas faias de pão com presunto.

- Vá lá rapazes, comam não se façam rogados. Ó Ritinha, então os copos? A rapariga saiu em direcção à cozinha, seguida pelos mal disfarçados olhares dos rapazes que em presença da moça parece que tinham perdido o apetite.

Sem a presença dela, atiraram-se como lobos famintos às iguarias expostas, enquanto o Sr. Monteiro enchia um jarro de vinho. À vista do desbaste o Sr. Monteiro comentou:

- É rapaziada! É assim mesmo, há que arranjar forças pró caminho. Então Ritinha, de que é que estás à espera para encheres os copos?

Os rapazes sorveram o vinho em pequenos goles, sempre observados pela moça que não tirava os olhos deles, deixando-os pouco à vontade, numa curiosidade feminina presenciada pelos pais.

A um canto da adega, o Sr. Monteiro sorria. A dona Maria ao reparar no sorriso do marido, observou em tom de reclamação.

- Ainda te ris? Olha-me para a tua filha, sempre a cirandar aqui em volta dos rapazes, até parece que nunca viu gente estranha cá em casa.

- Rapazes de fora da terra e da idade dela não.

- Ó homem! Tu não me digas que a nossa menina, com doze anos, já anda de cabeça no ar.

- É a natureza! É a natureza a desabrochar mulher, ou será que já te não lembras a idade com que começámos a catrapiscar. Dona Maria baixou os olhos, corando ligeiramente.

Ana Rita, nascera numa casa de lavradores e cedo se habituou com as lides domésticas e com o acompanhamento do pai na lavoura, para desgosto da mãe que gostaria que a sua menina continuasse a estudar. Rodeada de mimos desde que nasceu, não dava um passo sem olhar protector dos pais e quando não eram eles era a Chica, a empregada da casa que a viu nascer. No campo era o Ti Roque, outro empregado do tempo do seu avô que lhe ensinara o nome dos pássaros e como tirar um grilo do buraco ou saber quando uma melancia estava madura.

Aqueles dois rapazes de S. Miguel, vieram quebrar-lhe a monotonia e a curiosidade que de alguns tempos atrás começava a sentir pelo sexo oposto. Os rapazes da aldeia, conhecia-os a todos desde o tempo escolar, porém não sentia qualquer curiosidade por nenhum deles.

- Então não comem mais? – Perguntou a Ritinha

- Não, muito obrigado, já estamos bem. - Respondeu o Fernando com um sorriso. António esboçou um sorriso meio amarelo perante a resposta do Fernando.

- Bom! Sr. Monteiro! São horas de irmos andando. – Disse o António ao reparar na pouca pressa do Fernando.

- Vão lá rapazes… vão com Deus e digam ao vosso patrão que eu vou lá no Domingo antes do meio-dia acertar as contas.

- Também posso ir paizinho?

- Depois vemos isso. – Respondeu o Sr. Monteiro com um sorriso.

Rodavam já fora de Silgueiros, quando António interpelou o Fernando.

- Ó meu impostor, tu por acaso mandas na minha barriga?

- Hã? - Soltou o Fernando distraído.

- Sim meu lindo. Por que carga d’água é que disseste à menina que já estávamos bem, quando ela perguntou senão comíamos mais.

- Comesses. - Resmungou o Fernando.

- Comesses, comesses, isso é bom falar, mas ali à frente das pessoas, depois do que disseste, tive vergonha. E estava-me saber tão bem. Mas tu armado em bom, respondeste, já estamos bem. Ela encheu-te a barriga, foi?.. Mas a mim não, és um impostor, ouvistes? Impostorão, isso é o que tu és. - Fernando não respondeu e o António ainda a remorder sons indecifráveis, acabou por se calar também.

Continua

Lorde
Enviado por Lorde em 07/08/2013
Reeditado em 07/08/2013
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