DECISÃO
Nicolau cofiou a barba, depois passou a mão pela cicatriz. Os grandes olhos pareciam maiores, arregalados, ainda sob o efeito da noitada de álcool. Tentou calçar a havaiana, mas uma tira arrebentara. Chutou-a e se levantou do banco, onde passara a noite, sentindo dor nos ossos. Pôs a mão no bolso e acariciou o metal. Uma ideia germinando. Aproximou-se da vitrina.
Olhou para os perfumes e procurou montar com eles um quebra-cabeça. Lia os nomes, agrupava-os por tamanho, fazia uma fila, empilhava-os, despejava o conteúdo, depois os recolocava nos mesmos lugares. Retomava o jogo, invertendo o anterior. Em momentos, xingava-se quando algum vidro caía e quebrava. Sou um desastrado, miserável, infeliz. Nunca poderia comprar um perfume. Se já nem de banho gosto.
Quando alguém parava a seu lado, tinha vontade de puxar conversa. Mas mal olhava e a pessoa tratava de logo se afastar. Procurou ver-se na vitrina. Seus 62 anos pareciam dobrados. As roupas amassadas, um pé descalço e a cara de mau. Pensam que sou bandido, concluiu. E não sou? O que fiz da minha vida? Tinha lar, esposa, filhos, emprego. Perdi. Troquei pelo álcool. E é só ele que tenho. Nem no albergue, com meus iguais, encontro um amigo. Tenho raiva da vida, das pessoas, do mundo.
Continuava a brincar com os vidros, imaginando-os cheios de uísque. É melhor do que perfume. Tem mais utilidade.
As pessoas passando para um lado e para o outro, no vai e vem do shopping, enquanto Nicolau ia se lamentando, destilando ódio misturado ao líquido precioso.
Quando ficou sem família, decidiu ser cafetão. Era forte, bonito. Foi fácil aliciar garotas do interior, com falsas promessas. Primeiro utilizava-as, ensinando o ofício. Tinha descoberto uma mina de ouro. Contratou um advogado e um médico para resolver algumas questões. Sentia-se honesto com isto. Mas quando tinha bebedeiras fora do controle, fazia bacanais com seu próprio material de trabalho, provocando danos. Chegou um momento em que nem o advogado conseguiu resolver. Foi preso. Quando saiu, tentou retomar o ofício, mas a polícia não deu trégua.
Foi bebendo o dinheiro e tentando a sorte nos jogos. Numa noite, envolveu-se numa briga, quase sendo degolado. Ficou meses no hospital. Ao sair, só tinha a roupa do corpo. Procurou uma de suas antigas prostitutas, com quem passou a conviver. Ficou o tempo suficiente para recuperar as forças, engordar e deixar a barba crescer, como tentativa de esconder a cicatriz. Depois, subtraiu as economias da mulher e mudou de Estado.
Conseguiu emprego de papai-noel. Foi a partir daí que passou a ter ódio também das crianças. Não suportava os gritos, as conversas, os risos e os puxões de barba: queriam ter certeza de que era um Noel de verdade. Um dia, um menino levou-o à loucura. O fedelho foi azucrinando a tal ponto que se descontrolou e o agarrou pelo pescoço. Só não matou o pequeno, porque um policial estava atento. Foi preso.
No presídio mais uma vez. A revolta contra o mundo acirrou-se. Quando obteve a liberdade, sentia-se doente, sem coragem e com vontade de agredir quem quer que ousasse olhá-lo. Ficou dias trancado no albergue, sem ânimo de gozar a tão sonhada liberdade.
Quando o verão chegou, sentiu que era a hora. Passava o dia catando material reciclável, com o que ganhava o suficiente para beber e comer alguma coisa, dormindo em bancos nas praças.
Olhou mais uma vez para os vidros de perfume, agora já cansado de brincar de faz de conta. Haviam perdido a atração. Colocou a mão no bolso. O metal estava aquecido com o calor de seu corpo.
Na noite anterior, sob o banco onde dormira, encontrara um revólver. Inicialmente, pensara que muita bebida poderia resultar do achado. Mas na frente da vitrina, amargurando a vida, sentiu-a sem mais utilidade. No meio dos passantes, da alegria e dos gritos no shopping, segurou firme a arma e apontou contra o próprio ouvido.
Nicolau cofiou a barba, depois passou a mão pela cicatriz. Os grandes olhos pareciam maiores, arregalados, ainda sob o efeito da noitada de álcool. Tentou calçar a havaiana, mas uma tira arrebentara. Chutou-a e se levantou do banco, onde passara a noite, sentindo dor nos ossos. Pôs a mão no bolso e acariciou o metal. Uma ideia germinando. Aproximou-se da vitrina.
Olhou para os perfumes e procurou montar com eles um quebra-cabeça. Lia os nomes, agrupava-os por tamanho, fazia uma fila, empilhava-os, despejava o conteúdo, depois os recolocava nos mesmos lugares. Retomava o jogo, invertendo o anterior. Em momentos, xingava-se quando algum vidro caía e quebrava. Sou um desastrado, miserável, infeliz. Nunca poderia comprar um perfume. Se já nem de banho gosto.
Quando alguém parava a seu lado, tinha vontade de puxar conversa. Mas mal olhava e a pessoa tratava de logo se afastar. Procurou ver-se na vitrina. Seus 62 anos pareciam dobrados. As roupas amassadas, um pé descalço e a cara de mau. Pensam que sou bandido, concluiu. E não sou? O que fiz da minha vida? Tinha lar, esposa, filhos, emprego. Perdi. Troquei pelo álcool. E é só ele que tenho. Nem no albergue, com meus iguais, encontro um amigo. Tenho raiva da vida, das pessoas, do mundo.
Continuava a brincar com os vidros, imaginando-os cheios de uísque. É melhor do que perfume. Tem mais utilidade.
As pessoas passando para um lado e para o outro, no vai e vem do shopping, enquanto Nicolau ia se lamentando, destilando ódio misturado ao líquido precioso.
Quando ficou sem família, decidiu ser cafetão. Era forte, bonito. Foi fácil aliciar garotas do interior, com falsas promessas. Primeiro utilizava-as, ensinando o ofício. Tinha descoberto uma mina de ouro. Contratou um advogado e um médico para resolver algumas questões. Sentia-se honesto com isto. Mas quando tinha bebedeiras fora do controle, fazia bacanais com seu próprio material de trabalho, provocando danos. Chegou um momento em que nem o advogado conseguiu resolver. Foi preso. Quando saiu, tentou retomar o ofício, mas a polícia não deu trégua.
Foi bebendo o dinheiro e tentando a sorte nos jogos. Numa noite, envolveu-se numa briga, quase sendo degolado. Ficou meses no hospital. Ao sair, só tinha a roupa do corpo. Procurou uma de suas antigas prostitutas, com quem passou a conviver. Ficou o tempo suficiente para recuperar as forças, engordar e deixar a barba crescer, como tentativa de esconder a cicatriz. Depois, subtraiu as economias da mulher e mudou de Estado.
Conseguiu emprego de papai-noel. Foi a partir daí que passou a ter ódio também das crianças. Não suportava os gritos, as conversas, os risos e os puxões de barba: queriam ter certeza de que era um Noel de verdade. Um dia, um menino levou-o à loucura. O fedelho foi azucrinando a tal ponto que se descontrolou e o agarrou pelo pescoço. Só não matou o pequeno, porque um policial estava atento. Foi preso.
No presídio mais uma vez. A revolta contra o mundo acirrou-se. Quando obteve a liberdade, sentia-se doente, sem coragem e com vontade de agredir quem quer que ousasse olhá-lo. Ficou dias trancado no albergue, sem ânimo de gozar a tão sonhada liberdade.
Quando o verão chegou, sentiu que era a hora. Passava o dia catando material reciclável, com o que ganhava o suficiente para beber e comer alguma coisa, dormindo em bancos nas praças.
Olhou mais uma vez para os vidros de perfume, agora já cansado de brincar de faz de conta. Haviam perdido a atração. Colocou a mão no bolso. O metal estava aquecido com o calor de seu corpo.
Na noite anterior, sob o banco onde dormira, encontrara um revólver. Inicialmente, pensara que muita bebida poderia resultar do achado. Mas na frente da vitrina, amargurando a vida, sentiu-a sem mais utilidade. No meio dos passantes, da alegria e dos gritos no shopping, segurou firme a arma e apontou contra o próprio ouvido.