O PAPAGAIO DA FALECIDA

Não era a toa que ele era chamado de Calaobico, pois isso era o que menos fazia, e que ouvia da senhora quando abria seu repertório:

- Cala o bico louro!

Papagaio daqueles arretados que repetia até, e com perfeição, a introdução musical do jornal da televisão.

- Tchan, tchan, tchan, tchan, tchan tchan... tchan

Passava boa parte do dia imitando os sons que ouvia em casa, e se acaso estivesse com fome e não fosse servido, coincidentemente ou não, descarregava a saraivada de palavrões, que ouvia da desbocada senhora, que ao perceber, por exemplo, que algum moleque pulara seu muro para roubar goiabas gritava cabo de vassoura em punho:

- QUE MERDA NÃO TEM COMIDA EM CASA, NÃO?

Ao que o moleque trepado e pulando o muro de volta, respondia:

- AMÉLIAAA SÁ PUTA!

Pois é, era quase exatamente o que Calaobico repetia quando sua espiga de milho já não tinha grãos para lhe oferecer.

- CURRUPACO!! NÃO TEM COMIDA NÃO, AMELIA SÁ PUTAAA!! – dizia o bicho.

A senhora gritava de lá:

- CALA O BICO, LOURO! – e ia servir-lhe com ele repetindo:

-CALAOBICO, LOUROO!! CALAOBICO LOURO!!

Pois bem, Dona Amélia, solteirona e fogosa, tinha um amante secreto de quem falava em voz alta na casa com todas as janelas e portas fechadas, o nome quando em suas relações, mas somente seu segundo nome, pela metade e no diminutivo:

- AI, FREDINHO, FREDINHO VOCE ME ACABA VOCE ME ACABA!!

Calaobico, que tinha sua gaiola presa no corredor de entrada da casa, mal o homem chegava, sorrateiro. Arrepiava o topete e começava a repetir o que ouvira. A ave ligava a presença do homem ao que a dona quase gritava. Como todos de sua espécie o fazem ao registrar um determinado som. Dona Amélia então, se apressava a colocá-lo para dentro de casa esquecendo que qualquer ruído produzido em seu delírio sexual era também captado por aquele gravador de penas verdes.

Fredinho, na verdade se chamava Jose Alfredo e era um conhecido senhor e encanador na diminuta cidade, que além de prestar bons serviços como bombeiro hidráulico, também cuidava dos corações solitários e de outras partes mais dos corpos das vizinhas mal-amadas. Casado pai de quatro filhos, e frequentador da igreja local, onde a esposa ardorosa beata era fidelíssima aos preceitos da igreja, era também considerado respeitador, abominava bebida e bares e tinha poucos amigos. Mais sonso?... Impossível.

Dona Amélia, já nos seus quarenta e alguns anos, era uma mulher saudável, um pouco acima do peso, mas nada exagerado. Mesmo assim foi difícil retirar seu corpo do pequeno banheiro da casa onde caíra fulminada por uma parada cardíaca, depois de uma vizinha amiga havê-lo descoberto, após chamá-la várias vezes ao portão e notar que sua porta estava apenas encostada.

Assim Calaobico se viu órfão, claro que não tinha nenhuma ideia do que acontecera e como foi ignorado em função de tudo o que foi preciso fazer para o enterro de sua dona, que nem parentes tinha e, não fosse o padre local teria sido enterrada como indigente.

Desesperado e preso em sua corrente gritava seu nome e o nome da falecida seguido dos palavrões de sempre. Apesar de dócil com sua dona, não permitia que mais ninguém se aproximasse era arisco e feroz, até que o próprio padre, espiga de milho à mão, conseguiu agarra-lo e libertá-lo da corrente. Calaobico antes tão domesticado passou a ser uma ave selvagem, selvagem e falante.

Visitava as casas dos vizinhos repetindo tudo que ouvia e em tom tão alto e clara definição, que passou a ser atração da pequena cidade. Falava o nome das pessoas, bastando ouvi-lo uma única vez, assoviava hinos da igreja para onde voava e pousava no confessionário aguardando as atenções, de agora seu único amigo o padre, que continuou alimentando-o após as missas.

Calaobico só silenciava quando ouvia o som do órgão, mas durante a missa era só perturbação, mas ninguém ousava expulsa-lo, rezava junto com os fiéis e repetia:

- AMÉM – ao final de cada reza logo em seguida aos fiéis, o que fazia com que muitos não resistindo sorrissem, deixando o padre desconcertado.

Só uma pessoa o odiava. Ou, melhor, temia sua língua. José Alfredo, a quem ele não esquecera e bastava que o visse para começar, inocentemente a entrega-lo:

- CURRUPACO!!! AI! FREDINHO VOCE ME ACABA, VOCE ME ACABA Uiii! Aiiiii! Hummmm!

O “honrado” senhor já nem comparecia as missas, pois ao descobri-lo entre os presentes o louro não resistia, afinal ele era a única lembrança viva de sua dona. O homem começou a imaginar um jeito de acabar com aquela ameaça voadora, antes que sua esposa desconfiasse quem era o “Fredinho” já que toda a cidade comentava o que o papagaio dizia na igreja, e como ninguém ignorava sua origem, era fácil imaginar que se tratava de um amante secreto e, certamente comprometido da falecida Amelia.

Calaobico acostumou-se tanto à igreja que passou a dormir no alto de sua torre em uma das janelas abertas, por onde o som dos sinos se espalhavam para despertar os moradores, e foi onde José Alfredo resolveu que o pegaria e calaria seu bico para sempre torcendo-lhe o pescoço.

Assim em uma madrugada em que a esposa dormia profundamente, levantou- se, silenciosamente saiu de casa sem fazer ruído, dirigiu-se ao fundo da igreja, por onde várias vezes antes já entrara para fazer algum serviço, pois tinha a chave cedida pelo padre. Subiu pé antepé a escada que levava a torre e lá em cima, rodeou o sino esbarrando levemente e quando deu o bote em Calaobico, este saltou. O homem se atirara com tanta gana, que passou direto pela janela, escorregou pelo telhado e acabou estatelado e desacordado junto à porta dianteira da Igreja.

Ao tocar dos sinos às seis da manhã, o que ali se via era Jose Alfredo desmaiado de braços estendidos e Calaobico andando de um lado para o outro sobre o alpendre da entrada da igreja e repetindo várias vezes:

CURRUPACO! AI! FREDINHO, VOCÊ ME ACABA! VOCE ME ACABA! Aii! Uiii! Hummmm!

-

Jogon Santos
Enviado por Jogon Santos em 05/08/2013
Reeditado em 13/09/2016
Código do texto: T4421057
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.