O Burro 2ª parte
Com o animal pela arreata, seguia o António a pé, num bom ritmo. Sentado na boleia, ia o Fernando que brincava com o pequeno chicote. Os olhos dos dois rapazes brilhavam de contentamento, perante a missão que tinham pela frente. Naquele dia eram donos e senhores daquele animal. Para o Fernando era um dia fora da oficina e oportunidade de conhecer outra terra e quem sabe, talvez umas cerejazitas ou uns pêssegos temporões pelo caminho. O único senão, era aquele chato do António que tinha a mania que era mais responsável e raramente concordava com as suas escapadelas da oficina, para atestar o bandulho com fruta da época. E o raio do patrão também achava que o menino era uma espécie de santinho. Porém nunca recusava a fruta que lhe dava. Um fingido, é o que ele era.
António um ano mais novo do que o Fernando, era no entanto nele que o patrão confiava. Essa confiança não o impedia de sonhar. Via-se a conduzir não um dócil jumento, mas antes uma diligência, como via nos filmes. Na boleia o guarda com chicote na mão, perdão com a espingarda de repetição. O que não combinava muito bem era um condutor de diligência ir a pé, porém, era só até sair dos olhares das gentes da aldeia.
No cimo da ladeira, António olhou para trás, mal se via já a torre da igreja, já podia sentar-se na carroça, pegar nas rédeas e sentir-se um autêntico condutor de diligências.
Na estrada principal, o mais encostado possível à berma por causa de algum automóvel, por mais do que uma vez o António esteve tentado a descer e conduzir o bicho a pé.
- Se tens medo eu conduzo. – Disse o Fernando.
Esta frase, foi o bastante para que os sonhos do António desaparecessem e de condutor de diligências, passasse para um inexperiente condutor de jerico, assustando-se cada vez que passava um automóvel junto à carroça. Mas alto lá, isso de passar as rédeas ao descomandado do Fernando é que nunca.
- Medo tem a tua prima, tenho é que ter cuidado para o burro não se assustar com os carros.
- Pois!..
- Mas pois o quê?.. Tiraste o dia para me chatear? Se não vais bem salta e vai-te embora que eu desenrasco-me sozinho. Foi a mim que me entregaram o burro, portanto se não queres ir, salta que ainda vais a tempo.
Fernando não respondeu ao desafio, ficou no entanto a matutar: «este gajo vai mesmo com a mosca, o melhor é eu não ligar senão ainda perco o passeio».
Há muito que saíram da estrada principal. Rolavam agora pachorrentamente numa estrada de Macadame, quando o Fernando sempre de gargalo no ar disse:
- Pára aí depressa que eu estou aflito.
António ainda que desconfiado parou a carroça e aguardou que aquele, alma danada fosse fazer o serviço. - «Ah sacana!.. Tinha logo que te dar a vontade ao pé desta fazenda», pensou o António ao vê-lo saltar o pequeno muro que delimitava uma terra cultivada.
- «Qualquer dia é dia de Santa Maria, ai é, é! Não tem juízo nenhum, tantas faz que um dia ainda leva alguma sacholada e depois quero ver como é».
Um grito interrompeu-lhe os pensamentos, sem saber que atitude tomar, agiu por instinto, saltou da carroça e correu para o muro para tentar ver o que se estava a passar. Com uma pedra em cada mão, para o que desse e viesse, António com voz abafada chamou pelo colega. Respondeu-lhe uma espécie de uivo. Novamente um gemido que abafado pelo restolhar do milho fez com que o António se pusesse numa posição defensiva, pronto a lançar uma calhoada nas trombas de um qualquer, se ele avançasse com ideias de o malhar, como parecia que tinha feito ao Fernando.
O movimento das canas do milho a afastarem-se indicava com clareza por onde vinha alguém. António sentia que o bater do coração o denunciava, tal era a força das pancadas, mais parecia um tambor, fazendo com que o sangue circulasse a toda a mecha. Sentia todo o corpo a latejar, o rosto repentinamente transformou-se numa máscara, num misto de terror e de coragem encurralada, pelo sentido de ajudar o colega. Com a pedra na mão e os dedos crispados deu dois passos para trás, para poder ver primeiro, antes de ser visto e ter tempo de avaliar a situação, de maneira da primeira ser dele.
António lançou um olhar de relance, para o muro semidesfeito e confirmou que pedras soltas não faltavam para lançar no caso de falhar alguma, situação pouco provável, devido à pouca distância e à sua pontaria. As últimas canas de milho já se mexiam no entanto para surpresa do António ainda não via o vulto.
- «Vem de gatas», pensou o António.
Com um olho semicerrado a fazer pontaria, puxou a mão atrás para arranjar impulso e desferir a primeira calhoada, quando viu a cabeça do Fernando assomar por entre o milho.
A surpresa e o alívio de ver o colega, fez com deixasse cair a pedra em cima do pé, causando-lhe uma careta de dor, enquanto com as mãos agarradas ao pé ensaiava uns passos de dança, ao pé-coxinho.
Curvado e com ambas as mãos entre as pernas, apareceu o Fernando.
- Ai que dor!..- Gemeu o Fernando.
- O que te aconteceu? - Perguntou o António, ainda mal refeito de toda aquela aflição. Como resposta, o Fernando baixa as calças e mostra-lhe um dos ovos do seu ninho, inchado e vermelho. À vista do inchaço o António ficou preocupado, sabendo por experiência que uma pequena pancada naquele local, eram dores horrorosas. De testa franzida perguntou:
- Como é que fizeste uma coisa dessas?
- Então como é que fiz?.. Então, eu estava a fazer o serviço e quando eu me preparava para limpar o ó, desequilibrei-me e sentei-me no chão…
- Sentaste no chão?
- Sim estúpido, se estava de cócoras foi fácil desequilibrar-me.
- Mas espera aí, se caíste para trás como é que te aleijas à frente? - Diz o António com ar malicioso.
- Irra!.. E se me deixasses acabar? Está aqui um homem cheio de dores e tu com perguntas parvas. Como estava a dizer, quando me sento, sinto o chincar de qualquer coisa, sinto primeiro uma dor aguda e depois uma dor como se me faltasse o ar. Fiquei ali enrolado que nem tive forças para te pedir ajuda. E tudo porque um “manfio” qualquer se lembrou de armar um costilo, (espécie de ratoeira toda em arame) mesmo debaixo duma cerejeira.
Conforme o Fernando ia descrevendo a sua desventura, o ar franzido do António desvanecia-se e os olhos adquiriam brilho, ao mesmo tempo que cerrava os dentes, num esforço para não rir ao imaginar a cena. Sem se puder conter mais, desatou às gargalhadas, para desespero do companheiro ainda meio trôpego.
- Ainda te ris da minha desgraça! - Comentou o Fernando com ar lamuriento.
- E não é para rir?.. Ah, ah, ah... Então, tu, vens de tão longe para encontrar um costilo estúpido que confunde o teu coiso com um pássaro… Ah, ah, ah… E mais… como é que te limpaste, se te sentaste em cima da porcaria que fizeste? Ah, ah, ah. - Ai que cheiro!.. Ah, ah, ah! - António com ar trocista, apertava com os dedos o nariz, fingindo não suportar o cheiro.
Fernando amuado sentou-se atrás na carroça e pouco depois deitou-se, talvez para suavizar algum incómodo que ainda pudesse sentir. António, ainda a sorrir conduzia no entanto evitando os buracos da estrada, imaginando que o colega não iria nada bem para se ter deitado.
Continua