O Burro

Esta é uma história verdadeira em que as mil peripécias de dois rapazes e um burro acabam num final feliz...Num casamento, mas por ser longa tenho que apostar em vários episódios.

- Mãe!...já são horas?

- Não!.. Dorme que ainda é muito cedo!

António rodou para o outro lado da cama, enquanto com a mão afastava as migalhas da broa endurecida que lhe magoavam as costas. Resultado de um hábito de anos que, ao deitar, tinha sempre que comer um pedaço de pão na cama.

Sem sono, António, de barriga para cima olhava para o tecto despido de forro do exíguo quarto sem qualquer janela, tentando vislumbrar alguma claridade nas frestas do telhado. A escuridão era total, mas a ansiedade não o deixava dormir, apetecia-lhe levantar-se e ir para cozinha ler um bocado, mas o medo que a mãe ralhasse aquietou-o.

O relógio da Igreja começou a dar as horas. Cada pancada do martelo no sino era absorvida com avidez e contada em silêncio; cinco…seis…

- Sete!...Ó mãe já são sete horas, já me vou levantar! - Diz o António em jeito de pedido.

- Ó alma do diabo que não deixas dormir ninguém. Vai lá, vai, levanta-te, acende o lume e põe a cafeteira p’ró café que eu já lá vou.

Passado uns momentos, já uma mão feminina aconchegava a lenha e co-locava sobre a trempe uma frigideira a aquecer. Ao lado, um prato com postas de bacalhau envoltas em farinha aguardava que o azeite estivesse quente para serem fritas. António, com olhos gulosos observava a mãe a preparar o farnel enquanto comia numa malga, café com broa migada.

- Ainda demora muito? - Pergunta impaciente o António.

- Homessa!.. Demora o tempo que for preciso… então não querem lá ver! O raio do fedelho a inquietar-me…olha a minha vida!...Até parece que vai tirar alguém da forca - Responde a mãe aborrecida.

Com a trouxa do almoço na mão, António encaminhou-se para a porta com um seco até logo que lhe saiu de má vontade perante a observação materna. De um salto desceu os últimos três degraus do patamar da pequena escada de pedra que dava acesso à rua.

O ar fresco da manhã adocicava o cheiro do mato fresco que atapetava a rua – hábito de tempos medievais em que a rua servia de estrumeira, como uma espécie de reciclagem do mato em estrume que depois de curtido era utilizado no amanho das fazendas.

António, com uma fungadela, sorveu aquele odor agradável das diversas espécies de ervas roçadas de véspera e de mãos nos bolsos juntamente com a ponta da preciosa saca com o seu almoço, encaminhou-se para a oficina.

O sino da torre recordou-o de que faltava um quarto de hora para as oito. Resolveu apressar o passo para não chegar atrasado. A saca do almoço ia balanceando de perna para perna a cada passo que dava. Subitamente a saca com a pequena marmita naquele vai vem, entala-se-lhe entre as pernas desequilibrando-o. António, em aflição, bem tentou tirar as mãos dos bolsos para arranjar algum equilíbrio, porém sem sucesso, até parecia que tinha resina nas mãos. Ainda deu uns pequenos passos titubeantes tentando equilibrar-se na ânsia de evitar a queda, mas em vão, já só se viu estatelado ao comprido a cheirar e a beijar os paralelos da calçada.

Meio atordoado, apalpou a boca e verificou que não tinha partido qualquer dente. Embora dorido da queda, tentou disfarçar os efeitos do cómico trambolhão, perante os risos dos transeuntes que no seu gargalhar o magoavam mais do que o tombo. A saca com a marmita tinha voado a uns bons metros de distância, como se fora lançada por uma funda, tal foi o impulso da mão a sair do bolso. Por sorte, a tampa não se soltou e o almoço não se perdeu. Corado que nem um tomate, saiu o mais rápido que pôde dali, embora sem evitar ouvir os jocosos comentários ; - «para a outra vez, sempre que quiseres levantar voo, levanta as asas – mas que grande aterragem de barriga – é pá levanta-te que quer cair outro».

Assim que chegou à oficina perscrutou o pequeno terreno que a precedia. Perante o vazio, não evitou um pequeno esgar de descontentamento. «Será que não vem? Ou estará atrasado? Mas que sorte a minha! Parece que hoje tudo me corre mal».

Um assobio interrompeu-lhe os pensamentos, era o Fernando.

- O que é que te aconteceu? Andaste à caça de gambozinos? – Indagou o colega Fernando, perante a figura do António, sujo e arranhado.

- Caí. – Respondeu secamente o António.

- Caí!? Caíste mas foi nas mãos de alguém que te tirou as peneiras.

- Não me chateies!.. Se te disse que caí é porque caí.

- Tá bem pá, se caíste é porque estavas em pé ou então andavas na lua.

- P’rá lua vais tu, não tarda nada se continuas a moer-me o juízo.

Perante o tom alterado da conversa, Fernando achou melhor não teimar mais e mudou para o assunto que os tinha trazido até ao terreno.

- Então o Sr. Anselmo ainda não chegou? – Perguntou o Fernando.

- Vê se o tenho aqui no bolso… – Vociferou o António.

- Porra, pá!.. Estás cá com uma telha que ninguém te pode perguntar nada.

O dia àquela hora já ia quente naquela manhã de Julho, prometia ser um bom dia de Verão, para alegria da rapaziada que via em dias assim, motivo para fazer umas incursões até ao rio, para nadar, mergulhar e tirar as manias a alguns que, ali perante a malta, não eram capazes de mergulhar de cima da pernada do salgueiro.

O ruído de umas rodas de carroça teve o condão de levantar as cabeças dos rapazes, meio acabrunhados pela pequena discussão.

Lá vinha ele a trote, a puxar uma pequena carroça, o burro do Sr. Anselmo. Era um animal jovem, bem arreado e com carroça a condizer, era o orgulho do Sr. Anselmo que fazia gáudio de em dias de feira, passear com ele como se fora um animal de tiro, a puxar uma vistosa charrete.

- Bom dia rapazes.

- Bom dia Sr. Anselmo. - Responderam em uníssono os dois rapazes.

- Vão chamar o vosso patrão que eu tenho pressa.

Fernando saiu disparado em busca do patrão. Passado pouco tempo já o patrão e o Sr. Anselmo discutiam os pormenores do empréstimo do burro. Pouco depois, o Sr. Anselmo dá os últimos conselhos aos rapazes sobre a melhor condução do animal.

A tudo, os rapazes anuíam com a cabeça, ansiosos por iniciarem a viagem.

- E não se esqueçam de fechar a porta do pátio com a aldraba! Bom!…Vão lá e juízo!

continua

Lorde
Enviado por Lorde em 03/08/2013
Reeditado em 03/08/2013
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