A Família.
Minha vida até os dezesseis anos foi um entra e sai de lares adotivos e orfanatos.
Eu era uma adolescente rebelde e independente e não conseguia me adaptar às famílias que queriam me adotar. Revoltada, culpava todo mundo pela morte dos meus pais e dificultava qualquer entendimento com as pessoas, sendo castigada muitas vezes, por isso.
Eu não tinha outros parentes e assim, fui sendo levada de uma instituição à outra. Jurei que um dia teria uma família numerosa, para que meus filhos jamais passassem pelo que eu passei.
Com dezessete anos, arrumei um emprego de balconista em uma loja de flores e passei a estudar a noite, só voltando ao orfanato para dormir e assim, comecei a me sentir livre e feliz.
Eu adorava trabalhar entre as flores! Sentia-me feliz, entre rosas, cravos, margaridas e tantas outras espécies, mas a minha paixão eram as orquídeas!
E foi através delas, que Roberto e eu nos conhecemos. Ele veio comprar umas flores para a diretora da escola onde lecionava que aniversariava naquele dia e meio sem jeito, pediu a minha ajuda. Aconselhei-o a levar uma orquídea! Depois desse dia, nunca mais nos afastamos.
Roberto era filho único, seus pais já haviam morrido e por isso ele também queria uma família numerosa.Casamos no ano seguinte e logo demos início a uma família.
Depois da quarta gravidez, uma complicação interrompeu nosso sonho de ter uns dez filhos.
Os médicos me comunicaram que eu correria risco de vida se tivesse outro filho. Não me abati. Eu já tinha quatro filhos e isso me bastava!
Eu era a mulher mais feliz do mundo! Roberto era o marido e o pai que eu sempre sonhara ter e vivíamos felizes com nossos quatro filhos. Nossa casa vivia abarrotada de jovens, amigos de escola, que estavam sempre estudando com meus filhos e eu adorava fazer lanches para aquela garotada barulhenta e alegre.
Lembro-me bem de como eram alegres as comemorações das datas festivas: O almoço do Dia das Mães em restaurantes simples e baratos! O almoço do Dia dos Pais, que eu preparava com todo carinho! O Natal, com peru e rabanadas! O Ano Novo na praia! Páscoa e aniversários com a casa cheia de jovens! Éramos uma família feliz! Nosso lar era cheio de amigos e de amor!
Roberto e eu fomos abençoados com três filhos e uma filha: Gabriel, Alexandre, Marcos e Sandra! Com muito sacrifício, conseguimos pagar a faculdade dos quatro. Gabriel e Alexandre formaram-se em medicina. Marcos e Sandra, em veterinária! Vê-los belos e inteligentes, nos enchia de orgulho!
Todo o nosso patrimônio consistia num pequeno apartamento e uma pequena poupança, que guardávamos para uma necessidade mas o amor que nos unia era o nosso verdadeiro tesouro.
Eu era a mulher mais feliz do mundo! Até que tudo começou a desmoronar.
Gabriel conseguiu um excelente emprego em um hospital muito importante nos Estados Unidos e com um misto de alegria e tristeza, levei-o ao aeroporto, suplicando que ele viesse passar o Natal em casa!
Dois meses depois, Alexandre foi para a África em um projeto chamado: “Médicos Solidários”, e embora orgulhosíssima por isso, eu estava triste com a separação.
Por fim, Marcos e Sandra foram convidados a fazer parte de uma equipe de veterinários, que nas montanhas da China, lutam para salvar os ursos, da extinção.
Chorei copiosamente ao constatar que a nossa família havia se distanciado, mas eu procurava entender que eles precisavam se realizar profissionalmente. Para o Roberto, foi muito mais difícil aceitar a separação. Eu acordava a noite, e ele não estava na cama.
Ficava andando pela casa como um sonâmbulo, comia pouco e fumava muito. Tentei confortá-lo com o meu carinho mas a tristeza havia tomado de assalto o seu amoroso coração. Seis meses depois da partida de Marcos e Sandra, Roberto veio a falecer de um infarto fulminante! Meus filhos não puderam vir para o funeral! Fiquei doente. Não queria mais viver. Só queria morrer... A vida para mim perdera todo o sentido!
Meus filhos telefonavam constantemente mas eu já não queria saber de nada... Queria morrer para ir ao encontro do Roberto. Mas o carinho de Norma, minha vizinha, minha amiga, venceu a tristeza e o sofrimento e lentamente eu recomecei a viver.
Eu estava com quarenta e oito anos e precisava arranjar um emprego, pois a pensão do Roberto era insuficiente para me manter. Precisei usar o dinheiro da poupança para o enterro
e para as minhas necessidades mais urgentes.
Helena, - disse Norma.- Você poderia tomar conta de crianças. Você tem muito jeito, já criou quatro filhos e não estaria sozinha durante o dia!
-Norma! - eu disse.- Que ótima idéia! Aqui no bairro tem muitas mães que trabalham fora e eu poderia fazer um preço bem em conta. Vou tratar de fazer uns cartões de anúncio e colocar nos estabelecimentos comerciais.
- E pode contar comigo! -disse Norma.
Comecei então a tomar conta de crianças, ganhando o suficiente para completar as minhas despesas e me permitir viver com simplicidade, mas dignamente.
Algumas noites eu estava tão cansada, que nem conseguia pensar em nada. Mas em outras noites, eu chorava por toda a minha vida tão alegre que ficara no passado. A saudade do Roberto e dos meus filhos era insuportável e eu agradecia a Deus por ter colocado as crianças no meu caminho. Crianças que não tinham o meu sangue mas que me dedicavam tanto amor.
Os telefonemas dos filhos foram ficando a cada dia mais raros e eu fui me acostumando.
As crianças que eu cuidava foram crescendo e indo embora e outras vieram substituí-las.
De vez em quando eu recebia um cartão dos Estados Unidos ou da África. Da China, só recebi uma vez, uma foto de Marcos e Sandra com um lindo ursinho Panda.
Passaram-se dezesseis anos sem que eu visse meus adorados filhos!
A artrite tirou-me a alegria de cuidar das crianças. Minhas pernas e mãos, sem forças, já não me permitiam fazer esforço. Escrever e andar eram um sacrifício! Sentia-me cansada e desanimada. Desesperada, pedi a Norma que escrevesse aos meus filhos, contando como eu estava.
Recebi um telegrama confirmando que todos estariam em casa em um mês! No dia de Natal!
Eu não podia conter a minha felicidade! Combinei com Norma que faríamos um grande jantar, com Peru, rabanadas e todas as guloseimas que meus filhos tanto gostavam!
Norma se encarregaria de tudo! Contratei uma faxineira para deixar o apartamento brilhando!
Na véspera do Natal, eu tive uma surpresa: As mães das crianças que eu havia tomado conta, ao saberem da vinda dos meus filhos, se mobilizaram e vieram ajudar a Norma com a ceia e a arrumação da árvore de Natal! Até os jovens de quem eu havia cuidado em pequenos, fizeram questão de vir ajudar! Foi com muitos abraços e lágrimas de gratidão que eu me despedi de todos eles. Tudo estava perfeito! O apartamento estava limpo, a ceia estava pronta, a árvore com os presentes que eu comprara para cada um dos meus filhos. Como eu fazia antigamente... Tudo lindo!
Norma ajudou a me vestir e arrumar com roupas novas! Meu coração batia descompassado! Eu queria ficar bonita! Queria que meus filhos tivessem orgulho de mim. Quando um luxuoso automóvel parou na minha porta, Norma achou que era hora de ir embora. Não queria atrapalhar aquele momento. Dei-lhe o meu presente: um cordão de prata com um pingente em forma de flor! Apertei-a num forte abraço agradecendo tudo o que ela sempre fizera por mim, e corri para a porta!
Meu Deus! –pensei quando os vi. -Eles eram ainda mais bonitos do que eu me lembrava!
Gabriel e Alexandre eram a cópia do pai! Marcos e Sandra tinham os meus olhos e o meu cabelo! Nos abraçamos entre lágrimas e sorrisos!
Foi tudo lindo! Tudo maravilhosamente perfeito! Falamos sobre o passado... Recordamos a infância de cada um... Lembramos do amor do nosso amado Roberto!
Dormi feliz, como há muito tempo não dormia!
Acordei tarde no dia seguinte. Quando cheguei na sala, eles estavam conversando e me fizeram sentar.
Mamãe, preste atenção.- disse Gabriel – Nós conversamos e chegamos à conclusão de que não podemos deixar a senhora aqui, neste apartamento. Não é seguro! A senhora vai precisar de cuidados profissionais vinte e quatro horas!
-Vocês vão me levar com vocês? – perguntei esperançosa.
-Não podemos – disse Alexandre – Nossos empregos nos toma todo o tempo.
-Não podemos levá-la para a China – disse Sandra. – O clima frio só ia prejudicá-la.
-Mamãe, a senhora vai viver num lugar com pessoas da sua idade. – disse Marcos – Vai gostar! Terá pessoas capacitadas para cuidar da senhora, terá tudo a tempo e a hora.
Arrume suas coisas. Nós vamos partir agora!
Não me deixaram despedir daquela que por tantos anos, foi a melhor amiga que alguém podia ter! Apressados para voltar às suas vidas, deixaram-me neste asilo onde vivo há dez anos e de onde escrevo esta minha estória!
É um lugar agradável, com pessoas bondosas que cuidam das minhas necessidades.
Com o tratamento, voltei a escrever, já posso andar com a ajuda de uma bengala e consegui ligar para a Norma, que é a minha única visita nas tardes de domingo.
E nunca mais recebi nenhum cartão do estrangeiro. Nem um telefonema.
E idosos como eu, agora é a minha família!
Mas Roberto vem ficar comigo todas as noites! Entra sorrateiro pela janela do meu quarto. Recordamos com saudades os nossos tempos de outrora, rimos muito por estarmos nos encontrando às escondidas, como dois adolescentes e depois dormimos abraçados...
Com a certeza de que ninguém conseguirá nos separar!
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Nilda Dias Tavares.