A gata da velha!

“A revoada dos pardais deixou a praça suja, inteiramente suja! Os bancos estavam imprestáveis para que neles se sentassem. O folharal seco misturava-se sem fim, soprado pelo vento nem tão manso, nem tão bravio,mas envolvente. A cidadela era esquecida por sua própria natureza física – uma pequenina ilha afastada do continente por meia hora de uma voadeira. Seus habitantes, nem índios, nem mestiços. Um grupo de homens descendentes de europeus. Seus antepassados habitaram a Freguesia do Rio, há muitas décadas atrás. O lugar, hoje, era apenas o celeiro de lembranças nem tão boas, de quem por ali já havia existido.

A madeireira, do outro lado do rio, não havia dado certo. Os motores movidos a diesel encareciam muito. A energia elétrica ainda era um sonho distante. A cidadela dormia com as galinhas. A última voadeira trazia os poucos jovens que estudavam em Portolândia.

Na janelinha da casa da velha Aurora, tudo passava com o tempo, mas não sua curiosidade quase atrevida. Olhava tudo, enxergava o que mais lhe interessava. Morava sozinha no casarão antigo e tinha pavor de andar de barco. Por isso, não acompanhava a evolução fora da ilha. A curiosidade e seu terço, além da gata Mimi, eram suas companhias inarredáveis.

No último dia do ano, quando os fogos de Portolândia pipocavam no céu, pouca gente estava na pracinha da ilha. Dona Aurora brechava pela janela quase fechada. O irmão do padeiro atravessou a rua larga, apanhou umas folhas secas caídas no chão, limpou alguma coisa nas mãos. Olhou para o lado dos poucos que bebiam cerveja na areia do rio, onde as voadeiras atracavam e andou na direção contrária. A velha abriu mais um pouco a janela . Mimi gritou. Dona Aurora havia pisado na cauda da siamesa. O grito alto da gata fez o homem assustar-se. Ao invés de seguir, retornou pela calçada. Ele sabia quem poderia estar a essas horas vasculhando o movimento da rua. Só a velha possuía gatos: Mimi e outros mais que só chegavam em casa para comer e dormir. Passavam o dia a catar os peixinhos que caíam das redes de arrasto que os pescadores traziam do rio.

-É de lá essa zoada. É Aurora! A peste me viu! E agora?

Ele ainda ouviu o batido da janela. Ela nem sabia que ele estava vindo vê-la, receoso de que falasse a alguém que o tinha visto, na ilha, àquela hora. Se Joaquim padeiro soubesse, o mataria primeiro

-Dona Aurora?

Demorou mais de dez minutos para que a velha lhe respondesse. Não queria ser notada.

-Quem é a essa hora?

-Abra a janela que verá!

-Deus me livre. Não estou esperando nenhuma visita!

-A senhora me viu. Não vai dizer ao meu irmão que estive aqui, não é mesmo? Não tá louca!

-O que é que eu ganharia com isso?

E a velha resolveu abrir a janela. Não encontraria novidade do lado de fora da casa.

-Venceslau?

-Fale baixo, o vizinho de cá pode ouvir.

-Tá no mar, ele, faz três dias. Atravessou o rio na segunda-feira.

-Foram todos?

-Não ficou ninguém.

-Então, qualquer coisa, eu pulo o seu muro e durmo no alpendre de trás da casa deles.

-Está maluco? Ainda fala uma coisa dessas? Não aprendeu ainda? Diacho de vadiação!

-Vontade muita de vê-la, dona Aurora!

-Você devia era ter vergonha na cara, esquecer sua cunhada e procurar uma mulher solteira pra casar!

-Quem? Tentei tanto...

-Não falta sapato velho pra pé novo!

-Dona Aurora?

Era a pequenina frase que faltava. A noite barulhou muito. Houve mais gente na ilha àquela noite. O padeiro aderiu com sua amada à pequena zoada que alguns fizeram até quase a madrugada, ao lado do pequeno cais. Venceslau dormiu na sala, em um colchão que lhe ajeitou dona Aurora. Deu trabalho para ele deixar a casa da velha e correr até a voadeira deixada escondida na ilhota do meio do rio. Esse exercício de perigo se repetiu muitas vezes.

Repetidamente Venceslau driblava os olhos dos moradores na escuridão da noite. A nado vinha da ilhota, trazendo a roupa ensacada para não se molhar. Na areia do rio, sob umas amendoeiras altas, vestia a enxuta e deixava o calção molhado espremido, enxugando no vento forte que costumava ter alí.

-Já chegou, né? Entre logo! Teu irmão quase mata tua cunhada com uma surra!

-Quando foi isso?

-Ontem pela madrugada. Aquele cabeça dura jurou que você tinha visitado Sílvia ontem.

-Apanhou a inocente!

-Inocente? Ele só errou o dia em que pecou pela última vez. O resto, não! Foi bem merecido.

Sílvia não aguentara tanto sofrimento. Fugira. A casa da velha, antes acolhendo apenas felinos inquilinos, agora era quase um prostíbulo. Venceslau que amava Silvia, amou Aurora e Mimi. Esta última passou a ser-lhe a preferida. Aos olhares espantados das duas, ele se divertia com a gata. Quando escurecia na ilha, o casarão desbotado não tinha mais a sua janela aberta alimentando a curiosidade da velha. Pela manhã, logo cedo, ela era a única que se levantava e ia comprar leite, pão e ovos. Venceslau detestava peixe.

Certo dia a velha adoeceu gravemente. Necessitava ser levada para Portolândia. A voadeira na ilhota poderia até servir, mas como levar a velha? Sílvia não podia mostrar nem seu sopro de vida. O padeiro a mataria sem piedade

Ele vestiu-se com a roupa da nova e levou a velha na escuridão do tempo. Deixou-a à beira do rio. Nadou para trazer o barco, desta vez, até a beira da areia mesmo, do lado de cá da ilhota. Foi!

-Que velha cachaceira, essa dona Aurora. Vê só o porre que tomou no que deu! Foi o que pensaram as duas almas que passaram a seus pés, talvez em direção ao cais. Nem imaginaram a verdade que estava ali, caída, esperando o socorro alheio.

A coitada nem os olhos abria mais. Tudo deu certo. Ele levou-a cidade grande. Teve que demorar. Quase perdeu a perna esquerda, ao encostá-la no motor do barco. Ficaram os dois internados no mesmo pronto-socorro. A casa ficara para trás com a outra.

-Dona Aurora?

Sílvia não podia responder. Era o padeiro que queria dar-lhe um recado para que ela repassasse aos pescadores, seus vizinhos. Sílvia vestiu-se com a roupa da velha e meteu pó nos cabelos pretos, amarrando-os com um lenço para se parecer com a outra. Abriu a porta somente com dois dedinhos de distância uma falha da outra.

-Que quem?

Foi imediatamente reconhecida por ele, que forçou a porta e entrou.

-Dona Aurora está cheirando a pó!

-Cuide em deixar a casa – falou ela com a voz embargada e trêmula.

Foi muito o amor que fizeram. Ele dormiu com a falsa velha, sem deixar que ele tirasse as roupas da falsa Aurora. Muito amor,mesmo, fizeram. Enquanto durou a ausência dos outros, eles ficaram usando suas máscaras para conservarem o amor, que nunca havia acabado entre eles. Representaram muito bem, encenando a chance que seus desejos tiveram.

À porta, alguém toca!

-Quem será?

-Olha lá, Aurora!

-Que Aurora, que nada!

Ele sorriu. Deixou-a ir até à porta.

-Você com minha roupa nova? Quem lhe permitiu usá-la?

Entraram os dois, sãos e alegres. A primeira pessoa que Venceslau avistou, sentado no sofá velho da sala, foi ele. Empalideceu e desmaiou de medo. Que medo!

-Eu não tenho culpa de nada – disse a velha!

O padeiro correu a socorrer o irmão. Os ânimos se acalmaram, eles estiveram a se encontrar por meses, anos, talvez. A velha amou o padeiro, que amou Mimi, que amava Venceslau e que abandonou Aurora.”

-É por isso que, se você resolver ir morar lá naquela porcaria daquela ilha, eu não vou! Essa história é verdadeira mesmo. Todo mundo que mora lá, fica com fama de safado. Não vou não!

-E a empresa, o que direi para meus diretores?

-Mande eles morarem lá por você.

Havia uma lenda, na ilha, com muitos adeptos. Gato, ninguém queria criar. O padeiro, coitado, não saía de casa nem para ir à missa. Era prisioneiro dele mesmo. A casa velha que diziam, no passado, ter abrigado a velha Aurora, tinha apenas ratos e morcegos por inquilinos. A ilha só não era mais solitária por causa da força da lenda.

Na pracinha, o folharal continuava abundante. O vento nem manso, nem bravio misturava umas às outras. Os pardais ajuntavam-se e sujavam os bancos da praça. O tempo adora a ilha, não passa nunca! Qualquer hora dessas eu vou chamar uma meia dúzia de leitores meus e vou até lá. Não irei como escritor. Travestir-me-ei de leitor, para saber bem mais dessa lenda. Irei numa voadeira sem combustível!