A CRÔNICA DO ANJINHO.
Era um colunista inexpressivo de um jornaleco de minha cidade. Minhas idéias eram tiradas de matérias de grandes jornais, ou seja, não tinha idéia alguma, somente rebuscava aquilo que já fora escrito ou simplificava aquilo que já fora rebuscado. Numa manhã, sentava-me num banco de praça e lia o jornal, com os olhos aguçados à procura de uma passagem jornalística que gerasse um novo texto a ser reescrito. Porém minha atenção fora desviada das letras do jornal para uma pobre mulher que abordava os passantes. Passei a olhá-la, como procurando assunto para minha crônica do dia seguinte.
Fazia frio naquele dia, a mendiga enrolava-se num cobertor ordinário e sujo. Continuava a observá-la. Ela carregava nos braços um volume pequeno, envolto num cobertor furado, cuja alvura contrastava com a sujeira das mãos que o seguravam.
Ela me viu, isso me aborreceu, não queria ser visto, pretendia ficar à espreita dos acontecimentos, não gosto de ser o assunto. Por isso não gosto de narrar minhas crônicas em primeira pessoa. Ela se aproximou com as mãos abertas, senti seu hálito de cachaça. Ela me falou baforando aquele mau cheiro e assim travamos esse diálogo:
— Preciso de dinheiro...
Olhei uma placa escrita em vermelho sobre fundo amarelo que dizia: “Não alimente mais a miséria, não dê esmola”. Indiquei com o dedo o alerta para a coitada, ela me olhou com vergonha e me disse:
— Eu só leio as letra quando elas tá separado, seu moço, ajuntada eu não entendo elas não.
Depois de refletir um pouco, falei-lhe:
— Eu não vejo futuro em dar esmola.
— Nem eu, seu moço, mas no meu triste presente, tenho meu menino adoentado.
— Se a criança está doente, leve-a ao médico.
— Já fui antes de onte-ontem, o médico disse que era caso de interná, mas não tinha vaga no hospitar. Ele me deu a receita, é daquela injeção dolorida e cara.
Ela apresentou a receita do antibiótico, como se aquele papel gasto de tanto manuseio fosse a prova de suas palavras. Contestei:
— Essa conversa de pedir dinheiro com receita é velha, a senhora quer dinheiro é para beber pinga.
— Não quero bebê mais não, bebi um pouco só pra espantá o frio.
— E depois, seu nenê nem se mexe, deve ser...
— O meu anjinho não se mexe porque ele tá com frio, tá de asinha fechada, faz dias que ele tá doente.
— Deixa eu ver o rosto do seu bebê, isso se for um! Se ele estiver apenas dormindo, e não tiver aparência de doente, vou levá-la para uma delegacia, para que não mais explore o filho antes mesmo que ele comece a andar.
— O senhor pode dar uma olhadinha no meu anjinho, mas, cuidado com o vento no rostinho dele.
Com cuidado, descobri a cabeça da criança e dei uma espiadinha.
— O senhor viu que ele tá fraquinho, nem acorda?
Diante do meu silêncio, ela insistiu:
— O que é que o senhor tá me olhando desse jeito? Ele é bonitinho, ele tá roxinho de frio, só tá doentinho.
A voz me saiu embargada, quase sussurrada:
— Minha senhora, seu anjo está de asinhas fechadas, mas mesmo assim ele se foi, voou, voou. Ele já está no paraíso.
A crônica do anjinho de asas fechadas saiu no dia seguinte em minha coluna.