Ensinando o Amor
A viagem é longa e na última hora passou-se apenas por alguns quilômetros. Felipe leva embora seu filho. Além da dureza de não tê-lo sempre por perto, ainda tem mais a questão de ter precisado mudar-se pra uma cidade do interior a três horas de viagem da casa onde vive seu filho com a mãe dele. Sim. Ele não se refere a ela como sua “ex-mulher”, não por raiva, ou por gostar ainda dela, apenas porque não sente absolutamente nada. Ela é apenas a pessoa que vive com seu filho e o trouxe ao mundo. Erraram ao se casarem quando por “acidente” ele nasceu, e hoje cada um segue o seu caminho. Com o filho dormindo no banco traseiro do carro, ele apenas vai escutando seu som com os clássicos do rock’n roll que tanto o distraem na jornada. Enquanto passa para a próxima música da playlist, que começa a tocar “Roadhouse Blues” do The Doors ele ouve o som da criança acordando com o clássico gemido de quem dorme sem preocupações. Sorri consigo mesmo ao pensar como essa fase da vida é maravilhosa, sem obrigações, responsabilidades e sempre em busca apenas de diversão.
-Pai, a gente já chegou? – Pergunta seu pequeno
- Não, Gui. Ainda falta bastante. Você que dorme igual um urso, te peguei da cama, prendi na cadeirinha e você nem viu.
-Que nem urso? Por que pai?
- Por que urso dorme bastante no inverno.
- Mas nem tá frio.
- É que aqui tudo é bagunçado filho. É inverno, mas ta um solzinho bom.
Felipe, já começa a se preparar pra bateria de perguntas. Ele gosta disso em Guilherme, seu filho é curioso, sempre numa ânsia enorme de conhecimento. Apenas quatro anos de idade e gosta de histórias pra dormir, tudo pra ele é um mundo de aprendizado.
-Pai, eu tava na creche antes das férias e vi quase todo mundo com o pai e a mãe lá. No meu foi só a mamãe. Por que vocês nunca vão juntos me ver?
A pergunta o pegou como um soco no estômago. Ele sabia que uma hora ou outra isso afetaria Guilherme, apenas não esperava que tão cedo.
-Filho, a gente já não dá mais certo. Sua mãe e eu sempre que podemos tentamos fazer alguma coisa juntos pra não te deixar sentir essa falta, mas não é sempre que dá. Lembra? Até levamos você no parque. Não foi legal?
-Foi sim, pai. Mas eu ouvi você falar pro tio Alex que não tem mais amor pela mamãe. E você sempre me fala que tenho de amar todo mundo e tratar todo mundo bem. Mas você nem ama minha mãe.
Mais uma vez Felipe, perde o chão. Como explicar sobre o amor ao seu filho? Se as pessoas muitas vezes até morrem e não aprendem o que ele significa.
-Gui. Existem vários tipos de amor. E tem três que são os principais. Tem o amor ao próximo. O amor de casal e o amor de pais e filhos.
-Não entendi papai. – Disse Guilherme se esforçando pra se arrumar na cadeirinha de segurança, demonstrando que pela sua postura a conversa seria longa e ele queria entender cada detalhe.
-Assim. O mais básico, principal e difícil é o amor ao próximo. Esse é aquele que o papai tenta te ensinar desde que você nasceu. Que as pessoas têm suas diferenças de cor, de jeito, e um monte de outras coisas. Mas que a gente tem que saber amá-las mesmo assim. Porque esse amor é o mínimo que se espera receber. E querendo ou não, pra receber tem de dar. Um monte de gente, não vai te dar ele. Mas seu dever é dar e sair feliz, porque você fez a sua parte. Igual quando tava brincando com seu primo Thiago, bagunçou todo o quarto não foi?
-Foi, e ele nem me ajudou a arrumar. Eu falei que você ia brigar comigo e ele nem ligou.
-Então, muitas vezes, as pessoas não vão te ajudar. Mas você vai ajudar a elas. Vão te chamar de bobo, mas o importante é você saber que fez a sua parte. Existe um limite pra ajudar. Mas isso você vai saber à hora quando for mais velho. Não é porque ele não te ajudou a arrumar o quarto, que você não vai ajudar ele com o dele. Tinha um homem muito inteligente que chamava Gandhi e ele disse. “Olho por olho e o mundo ficará cego.”
- Que?
-Deixa eu explicar, se eu te trato mal, e você me trata mal, vou continuar te devolvendo mais mal. Agora, se eu te trato mal e você sempre devolve o bem, um dia e eu vou acabar me tocando que não posso te tratar assim. E daí vou te tratar bem, então tudo se ajeita. É difícil, quando você crescer vai ver. Mas quero que cresça sabendo muito bem disso.
- Tá pai. Mas isso não tem nada a ver com a mamãe.
-Calma, eu expliquei um só. Agora vamos ao de casal. O de casal é quando uma pessoa encontra outra que a faz mais feliz ainda do que já é. Foi assim que a mamãe e eu começamos. Esse tem quase a mesma dificuldade do amor ao próximo. Igual, a mamãe gosta de música “Putz putz” não é?
-É. Tem um monte no computador dela.
- Então, o papai gosta de rock. Você acha que a mamãe gostaria de ouvir rock o dia todo?
-Não. Ela vive reclamando quando eu coloco o patati e patatá e ela ta ouvindo o dela.
-Então, as pessoas são diferentes, e no amor de casal, elas precisam aprender a conviver com essas diferenças na mesma casa. Esse é muito mais complicado. Você quer ser o que quando crescer?
-Que nem você. Quero arrumar computador.
-E eu precisei estudar pra isso. E se você for casado com uma pessoa que quer ser enfermeira como a mamãe e vocês precisarem decidir quem vai estudar primeiro porque não dá pros dois ao mesmo tempo?
-Eu né?! Pai.
-Por que?
-Porque eu quero, ué.
-Tá vendo porque é difícil. Ela tem o mesmo direito que você, e o amor de casal tem isso. Quase sempre você precisa conversar e ver quando é hora de deixar ela fazer algo, e quando ela deixa você fazer.
-Ah, mas isso é chato. Nem vou casar então.
-HAHAHAHA, calma Gui. A vida vai ensinar como é bom também. Não é só isso que tem o amor de casal. É algo bonito, ter alguém pra conversar, pra chorar, pra rir, pra ter bons momentos e dividir os ruins. Tem outras coisas que você não vai entender agora. Mas quando for maior, vai sim querer ter uma mulher às vezes só por causa delas. E hoje eu não amo mais a sua mãe desse jeito. Não consigo mais ver ela como alguém que eu quero ter momentos bons e ruins, conversar sobre nós. Essas coisas. Mas ainda amo a sua mãe igual o outro amor. Eu quero o bem dela e sempre que puder fazer alguma coisa pra ajudar ela, vou fazer. Porque eu a amo como uma pessoa.
-Ah entendi. Então você ama a mamãe, mas não de casal.
-Isso mesmo.
-E agora tem o terceiro. De pais e filhos. Gui, sua mãe e eu, por mais que não estejamos juntos. Sempre vamos te amar. E por você ela e eu damos a vida. Porque é uma parte nossa. Eu era outro homem antes de você nascer eu hoje sou muito feliz só de te ver. Não posso imaginar a minha vida sem te ter nela. E sua mãe é do mesmo jeito.
-É, mas você e a mãe nem deixam eu fazer tudo e brigam comigo quase todo dia.
-Gui, mas eu preciso chamar a sua atenção se você faz alguma coisa errada. É uma prova de amor. Se eu controlo o que você faz hoje eu te ensino sobre a vida. Melhor eu te chamar a atenção hoje do que você crescer errado.
-Mas você disse que eu tenho de tratar bem, pra ser bem tratado. Daí vem e briga comigo.
-Mas Gui. Pensa se eu te deixar fazer tudo que você quiser. Você não vai aprender a receber um não. E quando for mais velho o não vem é do mundo. Muita gente vai te dizer não e preciso te preparar pra isso. O amor de pai e mãe é complicado nisso. Porque muitas vezes eu não gosto de fazer isso. Mas preciso. É igual o computador. Você gosta de jogar não é?
-Eu gosto.
-Então, se eu te deixar jogar o dia inteiro, e não mandar você arrumar sua bagunça no quarto, não falar a hora de dormir, a de acordar e de comer. Você não vai aprender que as coisas têm um limite por mais legais que elas sejam. E quando crescer não vai saber dar o tempo certo elas. E sem fazer isso você vai se prejudicar. Eu tenho que te ensinar.
-Então brigar comigo, é gostar de mim?
-Sim.
-Ah pai, não gostei.
-Haha, mas um dia você vai olhar pra trás e dizer o quanto isso foi bom Gui.
A viagem segue e eles chegam ao destino. Rebeca, a mãe de Guilherme está do lado de fora. Ela ainda é tão bela quanto era quando se conheceram. E vê-se o quanto ela sentiu falta do filho nesses dias, já que seus olhos de “mãe-coruja” estão já olhando ele pelo vidro e procurando qualquer indício de que o filho não foi bem cuidado. Mesmo sabendo que Felipe não deixaria nunca de ter todo o cuidado possível.
-Oi, Beca. Tá aqui o garoto. – Fala Felipe soltando Guilherme do banco que corre pra dar um beijo na mãe
-Oi, Lipe. Como você ta?
-Bem. E você?
-Bem também. E aí, Gui? Como foi na casa do pai?
-A gente brincou, foi no parque e ele me levou pra ver o boxe.
Beca olha pro ex-marido. Ela disse mais de uma vez que não quer ver o filho vendo luta por enquanto, mas o homem insiste em levar.
-Opa. Tô indo então. Essa é minha deixa antes que esse olhar me mate, haha.
-Tchau, Lipe.
O carro segue viagem e Guilherme olha pra mãe. E diz.
-Mamãe, olha o papai veio conversando comigo e eu perguntei por que ele não te ama mais?
-Mas o que? – Beca olha pega de surpresa pela frase do filho.
-Calma mãe, calma. Olha ele disse que te ama ainda. Mas é de um jeito lá. Depois eu falo vou brincar no quarto.
Enquanto o filho entra correndo, ela fica olhando pro nada, pensando no que Felipe teria dito para o filho. Ela também não sente nada mais. E ficou preocupada de o ex ainda nutrir alguma esperança. Mas ela conhece Felipe e sabe que ele não diria que a ama como antes ao filho porque ele diria a ela e se tem uma coisa que sempre admirou no homem é que sempre soube como se posicionar e explicar as coisas de modo bem compreensível a todos.. Basta agora esperar que o garoto dê detalhes da conversa pra ela.