A outra luz
Lia os barulhos e silêncios da casa. Sabia do ranger dos degraus da escada, do chiado das portas, do sopro do vento no vidro quebrado e do peso que a noite tinha quando só a minha respiração me perturbava a imobilidade. Sabia do estado do tempo vendo a rama das árvores, sentindo a água na vala do quintal, as bátegas mais ou menos fortes nos vidros da janela, o riscar da trovoada no breu infinito, o miado do gato faminto à porta da cozinha. Olhava, via, mas cirandava pelo meu espaço como um cego. À noite nunca acendia as luzes para ir à varanda, para beber água, ou abrir a cama. Foi assim durante todo o tempo em que me isolei cá dentro e me refugiei de tentações dentro de mim mesmo. Um dia vieste. Não tinhas nem dinheiro, nem família, nem emprego, nem casa. Poderias ficar ali ou noutro qualquer lugar. A ideia que me deixaste era que estavas pronta para tudo. Viver ou não. Não foi por generosidade que te acolhi, foi uma vontade diferente de vencer o medo de mim, dos outros, dos elementos. Foi por egoísmo. Queria ter de prestar atenção para saber das coisas, queria ter de acender as luzes para me localizar, queria, enfim, usar o espaço mas distinguir-me dele. Trouxeste outros hábitos, revelaste as potencialidades da casa e mostraste-ma como o abrigo onde é bom ficar com alguém ao lado. Ainda não dormimos juntos mas já nos olhamos como a forte possibilidade que iluminará o tempo que nos resta.