A FOTO DE NÁDIA

Entrei no quarto com o coração dilacerado. Votei pra casa a fim de cumprir um desejo de meu pai. Dessa vez, o ultimo.

No cômodo havia uma cama, um baú, um armário com roupas já há muito tempo não usadas, um relógio de pulso quebrado, alguns remédios, a bíblia e seus vários e inseparáveis livros espalhados em algumas prateleiras. Objetos dele. Meu pai. Resquícios de uma vida.

Papai era um homem de letras, jornalista formado, amante da cultura e das artes.

Lembro-me de que na minha infância observava admirada sua grande instrução e eloquência especialmente quando recebia alguns amigos e com eles discutia sobre diversos assuntos, sempre regados a um bom vinho e cigarros. Parecia um ambiente mágico permitido só para adultos. Mamãe nunca participava. Dizia ela que era conversa de homens e se prendia a tarefa de cuidar de minha irmã, para a qual sempre deu maior atenção, inclusive do que a mim. Eu perdida na imensidão da casa e de minha infantil solidão ficava fascinada por aqueles homens que alegravam meu pai. Escondia-me próximo a porta do escritório e admirava, quando então papai pausava a conversa, pigarreava, acenava com sua cabeça em minha direção e depois com seu largo sorriso apaziguador falava de modo firme e assertivo: “Vá lá pra fora criança. Vá brincar com sua irmã. Aqui há muita fumaça. Não é lugar pra você”. Eu seguia sua ordem, cumpria a sua vontade como fiz tantas vezes na vida. E faço agora.

No quarto, junto aos moveis sólidos e sóbrios pairava sua ausência. Após acostumar meus olhos ao ambiente semi-iluminado “Deixe as cortinas fechadas, luz natural estraga os livros” podia ouvi-lo dizer em minhas lembranças; passei a procurar no armário a velha mala e dentro dela a foto. A foto que ele me pediu.

Achei! Em cima do armário, embaixo de algumas caixas, local em que sempre esteve a velha e misteriosa mala de meu pai. Uma fina camada de pó denunciavam a passagem do tempo e a doença como também a nossa negligencia a um objeto que para ele era quase sagrado. Devido a uma imposição sua jamais mamãe, as filhas ou uma de nossas inúmeras empregadas que passaram pela casa ao longo dos anos se atrevia a chegar perto da mala, mesmo para espanar-lhe o pó. Respeitávamos dizendo para nós mesmas que a mala era a única lembrança de seu pais.

Eu, a única vez que cheguei perto de saber o seu conteúdo foi no dia em que voltei do funeral de mamãe. Deixei Charles e as crianças no carro e entrei na casa para saber de papai se ele precisava de alguma coisa, já que estava muito triste e recusou-se a ir à cerimônia. Na ocasião quando entrei no quarto, já no térreo devido as dificuldades de locomoção de mamãe, olhei ele remexendo seus pertences na mala. Num gesto suave a fechou, depois me olhando nos olhos com seus belos olhos azuis e empossados disse-me que queria ficar só.

Em outra ocasião vi ele dizer de forma bastante rude a uma diarista recém contratada e desavisada do sacrilégio que estava por fazer: “Limpe os livros, mas jamais mexa nessa mala”. A pobre senhora ficou sem entender o que fizera de errado, já que apenas fazia seu serviço. Entendeu que era a ranzizisse de idade. Deixei que pensasse assim, também eu não sabia o que pensar sobre seu zelo extremo pelo objeto.

Com um leve esforço retirei a antiga mala de cima do armário. Coloquei-a sobre a cama e a abri revelando o seu interior que sempre pareceu esconder um segredo familiar.

Papéis, muitos pápeis, uma roupa de bebê, cartas e algumas fotos. Que lugar era aquele? De quem eram as cartas? Quem eram aquelas pessoas? Estava diante de mim um passado desconhecido de meu pai.

Continuei procurando, tateando seus pertences até encontrar no fundo de uma das laterais o que me pareceu o formato de um livro. Peguei. O livro estava envolvido em um lenço de seda e era uma versão antiga do Alcorão. O que papai fazia com um livro daquele? Ainda mais assim, guardado como um tesouro. Dissipei esses pensamentos e busquei dentro dele a foto, onde ele me disse que estaria. A foto. Aquela que cumpria o seu ultimo desejo.

Uma mulher. Uma velha foto em preto e branco de uma jovem sentada em frente a uma arvore. Desconhecida mas ao mesmo tempo muito familiar. Rosto fino, ovalado. Cabelos negros e cacheados envoltos num lenço. Olhos marcante, profundos e que pareciam trafegar entre a pureza e a promessa, entre o sagrado e o profano. Olhos como os meus. Era essa a familiaridade. Aquela mulher em uma foto tão antiga refletia o meu próprio rosto em sua modesta e singular beleza. Somos ambas de fato parecidas, foi o que pensei, mesmo sem sabe a quem pertencia aquele rosto.

No verso da foto em uma caligrafia arrastada essas palavras: “Pietro, espero o dia em que seremos nós”. Assinado Nádia. Aquela mulher tinha o mesmo nome que o meu.

Naquele instante ocorreu-me um pensamento perturbador. Juntei rapidamente as fotos, algumas cartas, coloquei-as na bolsa e corri para o hospital. Precisava sair daquele quarto. Precisava de respostas e não as encontraria ali.

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A assepsia e as paredes brancas do hospital contrastavam com o ambiente sóbrio e escuro que tinha deixado há alguns minutos e me transportaram de volta a minha realidade. Meu pai estava morrendo.

No trajeto até o hospital vim pensando em todas as perguntas que me surgiram em relação a meu pai, seu passado e claro na mulher da foto.

Cheguei rápido, não tinha muito tempo, ou melhor, dizendo não tinha muito tempo com meu pai. Chega a ser irônico me colocar no lugar dele, usurpar-lhe esse direito quando na verdade é ele que não tem tanto tempo. Irônico por sempre achar que tinha tempo pra tudo e somente em situações como essa perceber o quanto me engano. A mim cabe agora apenas esperar que o sopro divino varra para as lembranças alguém que certamente me fará muita falta.

Quando entrei no hospital encontrei Charles, meu marido, no corredor. Ele precisava voltar ao trabalho. Beijou-me e disse que qualquer coisa estaria no celular. Meus olhos umedeceram, pois ambos sabíamos o que “qualquer coisa” queria dizer.

No quarto um médico tinha vindo monitor o paciente. Chamei:

- Doutor!

Ele assentiu com a cabeça, passou a mão nos braços de papai de forma carinhosa, mas mecânica e veio em minha direção.

Em seus olhos pude ver o seu constrangimento. Certamente era uma derrota pra ele. Estava perdendo um paciente e nada podia fazer para reverter isso. Não apenas o médico, mas todos naquela ala do hospital tinham uma atitude cordata e respeitosa. A morte tem um peso sobre todos nós. Impossível disfarçar e tentar ser natural. Ela roubava a naturalidade de nossas ações.

- Como ele esta? – perguntei

-Ficou um pouco agitado depois que você saiu, mas já esta mais calmo. Ele é forte.

Fiz que sim com a cabeça apenas por habito. Sim, papai era forte, mas não era aquele homem que convalescia na cama diante de mim. Ali ele estava despersonalizado. Era como se não fosse mais o pai que tive. Percebi que a ausência de papai estava no quarto em sua casa, mas também ali ao lado dele.

- Posso falar com ele?

- Claro! Apenas não o deixe falar muito. Ele precisa descansar.

Concordei, ignorando a nova ironia da segunda frase.

- Vou deixa-los a sós. Volto daqui à uma hora. O médico ajeitou os prontuários nos pés da cama e saiu.

Aproximei-me:

- Papai!

Ele ao me ver em seu campo de visão agitou-se um pouco. Tratei de tranquiliza-lo:

-Sim, papai. Eu trouxe.

Ergueu as mãos de forma débil e incomoda. Ainda me perplexava ver como tinha emagrecido no ultimo ano.

Rapidamente revirei a bolsa e lhe entreguei a foto.

Ele com a foto nas mãos levou-a aos lábios, beijou e começou a chorar. Não um choro discreto, mas um choro convulsivo. Talvez lágrimas guardadas por aquela mulher durante toda a vida.

Fiquei observando sem saber ao certo o que fazer. Deveria chamar novamente o médico? Provavelmente ele viria e medicaria papai para se acalmar. Não queria meu pai dopado. Precisava dele acordado e lúcido. Tinha perguntas a fazer e ele teria que estar em condições de responder.

Meu pai era um homem sensível, mas quase nunca chorava publicamente. Talvez por isso, enquanto eu esperava que ele se acalmasse minhas lembranças me levaram a vintes anos antes, quando em meu aniversário de quinze anos vi meu pai chorar pela primeira vez.

Estávamos no teatro, ele tinha me levado para ver um ópera de uma companhia europeia que faria apresentações em São Paulo. Eu estava com ele relutante, ansiava por uma festa como todas as garotas de minha idade e ao invés disso estava na companhia de um velho em um “programa de pai e filha.”

Ele percebendo o meu descontentamento mal disfarçado repetia a todo instante “Você vai gostar, você vai ver”. De fato quando as cortinas se abriram e a orquestra sinfônica começou a tocar os primeiros acordes de “Carmem de Bizet” fiquei encantada. Era tudo muito vibrante e aqueles homens e mulheres, contraltos, tenores e sopranos hipnotizavam a plateia. Achei muito superior ao cinema, meu único conhecimento artístico até então.

No final da peça pude vê-lo de pé aplaudindo calorosamente o espetáculo e em meio as lagrimas sorria pra mim e dizia “Isso é arte e nós italianos a fazemos melhor do que ninguém”. Realmente gostei da ópera, tanto que assisti inúmeras apresentações depois de crescida: “Aida”, “O Barbeiro de Sevilha”,” Guilherme Tell”,” La Gioconda” entre outras. Entendi naquele dia e naquele momento vendo papai chorar a sorte que eu tinha por ser filha de Pietro Negrette. Tantas lembranças. Tento me apegar a elas para não desmoronar.

No quarto, já mais contido papai entendeu pelo meu olhar a pergunta que eu estava prestes a fazer, antes mesmo que a fizesse. Quebrei o silencio:

_ Quem é ela?

Respirou profunda e ruidosamente devido a traqueostomia em seu pescoço. Respondeu:

_Ela é a mulher que mais amei na vida... até mais que Fátima a mãe de sua irmã. Falou isso e me olhou nos olhos com um olhar penetrante.

Naquele olhar eu compreendi que ele me pedia um consentimento para prosseguir. Sem que eu precisasse dizer qualquer coisa ele assentiu. Entendia os meus modos e meus silêncios melhor do que qualquer outra pessoa. Continuou:

_ Não minha filha, Fátima não é sua mãe... Sua mãe é ela....Nádia...Nádia é sua mãe.

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Oh, Meu Deus! Não sei dizer quanto tempo fiquei ali parada esperando que papai continuasse. Podia ser dois ou dez minutos. Parece-me uma eternidade.

Também não sei o que eu sentia. Não fiquei chocada. Surpresa? Talvez. Na verdade aquela revelação me pareceu a constatação de algo que eu sempre soube, embora jamais tivesse tido coragem de expressar minhas desconfianças abertamente. A vez que cheguei mais próxima disso foi há muitos anos quando eu ainda criança questionei mamãe sobre o porquê dela e Nandara serem loiras e terem o cabelo liso enquanto o meu era castanho e cacheado, como agora sei a mulher da foto. Ela meio que desconversou dizendo que as pessoas são muito diferentes e que talvez eu tivesse puxado os traços de algum parente distante de meu pai.

Claro, não era só isso. Vendo em retrospecto percebi na adolescência ainda mais a diferença de tratamento de minha mãe em relação a mim o que aumentou ainda mais minha solidão. Mesmo Nandara tendo tido alguns problemas durante a adolescência era para mim nítido o quanto eu era preterida em relação a minha irmã. Para minha mãe Nandara sempre foi a filha companheira. Para ela eram reservados todas as concessões, tolerâncias e indulgencias. Para Fátima minha irmã era quem merecia as melhores roupas, os melhores presentes, sua atenção e suas confidencias. “Deixa de bobeira menina, trato vocês duas de modo igual; sua irmã só é mais nova e você devia era me ajudar a cuidar dela em vez de ficar com esse ciúme bobo”. Eu sou a mais velha. Apenas dois anos. Dois anos que limitavam como um muro instransponível o amor de mamãe de se aproximar de mim. Mamãe! Fátima sempre será minha mãe apesar de tudo. É impossível pensar nela de outra forma.

Sim, aquela noticia confirmava o que no fundo eu já sabia. Não sou filha de Fátima, ao menos não biologicamente.

O segredo foi recebido por mim como uma noticia velha, com quase a indiferença de quem ouve uma previsão do tempo. Algo que não tinha uma relação comigo, embora explicasse todo o meu passado.

Minha irmã é claro também sentia essa diferença. Esteve ao lado de mamãe quando ela teve o derrame. Ajudou-me a cuidar dela, mas depois... depois da morte de mamãe a três anos ela se afastou como se sua presença não fosse mais importante. Como se o palco no qual ela representou tão bem seu papel de filha tivesse que ser desmanchado depois que ela perdeu sua principal expectadora.

Enfim, minha irmã se casou e fugiu. Não posso ser injusta, ela já namorava Conrado a cinco anos. Um namoro alias que sempre agradou meus pais, pois o genro era para eles a esperança de que Nandara nunca mais teria problemas com drogas. Fato que se confirmou. Assim que mamãe faleceu Nandara foi embora casada. Talvez não tivesse mais sentido ela para ela continuar aqui. Coincidiu com o casamento a mudança de Conrado para o Rio de Janeiro, onde ele é gerente de outro banco.

Sentia agora falta de minha irmã. Seria bom tê-la comigo para enfrentarmos juntas a morte de nosso pai. O câncer de pulmão de papai ela sequer participou. Mandei noticias, mas sei que não é certo esperar que ela se deslocasse pra cá com Nerel, meu sobrinho de um ano e meio. Não tenho dúvidas do quanto minha irmã se preocupa, mas a vida dela agora é lá no Rio de Janeiro.

Agora estava explicado o passado que eu conhecia. Precisava ainda desvendar toda a minha história que eu não conheci. Esperava uma história de amor. Não dava para esperar outra coisa vendo o carinho de meu pai pela mulher da foto, vendo seus olhos marejados e seu alivio por me contar aquele segredo que ele guardou por tanto tempo.

Mais calmo, naqueles dois ou dez minutos. Naquilo que como já disse pareceu uma eternidade papai finalmente começou a me contar a sua história...

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_Conheci sua mãe em 1970. Meu Deus, isso já faz tanto tempo... – Quantos anos?

_ Quarenta e três, pai. – respondi.

_Nossa! Quarenta anos! Agora, parece que foi ontem. Pois bem... quarenta e três anos. Eu tinha chegado da Itália fazia cinco anos. Você sabe, já te contei. Quando cheguei aqui fiquei na casa de seu tio, o saudoso tio Franchesco que tinha vindo pro Brasil depois da Guerra. Ele tinha perdido um filho na Grande Guerra. O filho era soldado. Pracinha como chamávamos. Depois da Segunda Guerra meu tio Franchesco juntou o outro filho, Josep, e a mulher e veio fazer a vida aqui no Brasil, nessa cidade onde ele sabia que podia desenvolver plantações de uva, atividade que ele já fazia por lá.

É pai, eu sei – falei e afaguei-lhe o braço. Confesso que durante todo o seu relato fiquei tentada a pedi-lo que parasse “Ele precisa descansar”, o médico disse; mas por outro lado percebi que papai precisava me contar tudo aquilo e eu sinceramente estava movida pela curiosidade de modo que não o impedi. Era minha única e ultima chance de saber um pouco mais sobre minha mãe biológica e o contexto de meu nascimento.

_Quando cheguei aqui trabalhei pouco com ele. A cidade tinha algumas industrias têxteis e eu e meu primo fomos trabalhar numa delas. Era a Argos uma importante industria de tecido.

_Trabalhando naquela industria muitas vezes não tínhamos como voltar pra casa que era num sitio do outro lado da cidade. Eu e meu primo Joseph alugamos então um quarto numa hospedaria. Foi ali perto da hospedaria e nessa época que a cidade passou a ter uma gráfica de jornal e eu larguei o emprego na indústria para trabalhar na gráfica. Antes disso as matérias eram enviadas para outra cidade para serem impressas.

_O trabalho era pesado, cansativo e eu que sempre gostei de ler vi ali uma oportunidade de melhorar de vida, tentar escrever no jornal. Bom, mas tudo isso você já sabe. Eu já te contei.

_ É pai, eu sei – repeti.

_Então um dia quando eu já escrevia regularmente para o jornal decidi fazer uma matéria sobre as religiões. Devo dizer que naquele tempo não tínhamos muitas opções sobre o que escrever. Faziamos quase uma revista semanal sobre receitas, cuidados com o carro, essas coisas. Na cidade não acontecia nada. Era tudo um grande matagal interiorano. Falar de política eramos proibidos. Tempos de ditadura e já tinha visto a policia entrar na nossa redação e no nosso estoque e queimar toda a edição de um dia por causa de uma matéria ou de um comentário que desagradasse os militares. Bom, onde eu estava?

_ Você dizia sobre escrever sobre religiões.

_ É é isso. Perdoe esse velho, minha cabeça já não é como antes. Como eu disse, estava ali sem ter muito o que escrever e sugeri uma pauta sobre as diversas religiões existentes, isso também porque o catolicismo perdia fiéis já naquele tempo devido as mudanças na sociedade, os valores, a queda de tabus feministas e sexuais, etc. Julguei que devia começar pelo islamismo, tinha uma mesquita ali por perto da fabrica de tecido na qual trabalhei. Ainda hoje é possível ouvir o chamado para a oração ressoar dos alto falantes do prédio. Começaria pelo islamismo porque dentro de alguns dias teria inicio o Ramadã, um mês sagrado para os muçulmanos.

_ Pesquisando para a matéria fui apresentado a uma família que seria entrevistada. Assim conheci Nádia, sua mãe. Ela era muçulmana.

_ Jamais esqueci aqueles olhos... Ela na sala, ao lado do pai, vestindo a burca a roupa tradicional para as mulheres fiéis a lei do Alcorão, o livro sagrado. Ela não falava nada, de cabeça baixa só ouvia enquanto o pai narrava e explicava alguns costumes, a religião e o porque de sua única menina, ela tinha 15 anos, ir viajar nos próximos meses para se casar no Líbano com um homem que ela ainda não conhecida, mas para o qual estava prometida em matrimonio. Ah, filha! Aqueles olhos quando me olharam me seduziram de imediato. Eram olhos que falavam tudo sem precisar de qualquer palavra.

_ Depois disso toquei minha vida. Trabalhei muito no jornal e Nádia foi embora sem mais nos vermos.

_ Cerca de três anos e meio depois comecei a estudar jornalismo em São Paulo. Precisava me profissionalizar porque quando comecei era tudo muito amador, qualquer menino que naquela época soubesse escrever um bom texto podia trabalhar como redator no jornal. Éramos um bando de ignorantes. Foi nesse período na faculdade que reencontrei sua mãe.

Nadia tinha sido rejeitada pelo marido por não ter lhe dado filhos e pouco mais de dois anos depois de casada ela estava de volta ao Brasil. Repudiada, o que é considerado a maior humilhação para uma mulher do islã.

Ela então, vivendo um momento de rebeldia contra os costumes da família e claro influenciada pelo feminismo da época resolveu fazer faculdade de filosofia.

Estava distraído no campus quando vi aqueles olhos passando... Como poderia esquecê-los? Eu a interpelei ali diante de outros estudantes e ela me disse que se lembrava de mim. Acho que me apaixonei por ela naquele momento. Amor a primeira vista.

Sua mãe estava bem diferente, carregava vários livros, tinha os cabelos presos por um lenço, óculos no rosto e principalmente sem a burca. Ela disse que a roupa tradicional era uma opção. Não era obrigada a usa-la. Passamos a conversar muito. Logo éramos vistos sempre juntos seja na hora que nossas agendas permitiam durante as aulas ou quando voltávamos para nossa cidade, Jundiaí.

Nádia era linda, meiga, inteligentíssima, companheira. A amizade rapidamente se transformou em amor. Tanto ela quanto eu éramos muito inocentes apesar dela já ter sido casada. Quanto a mim, naqueles anos só pensava em trabalhar e nós homens iniciávamos a nossa vida na zona boemia com as prostitutas.

A família dela jamais aceitou a nossa relação, afinal eu era um infiel. Um cristão. E ela por conta disso estava sobre a desaprovação de Alá e da família se envolvendo comigo. Não aguentamos a pressão e nos separamos por alguns meses. Foi nesse dia que ela me deu essa foto.

Quando ficamos juntos novamente o amor já não podia mais ser controlado e quando ela engravidou de você a família a rejeitou e a expulsou de casa. Ela imaginava que quando o bebe nascesse os pais a perdoariam. Infelizmente isso nunca aconteceu. Ela jamais voltou a ver os pais.

Tranquei a faculdade na época e nos casamos na igreja católica, religião em que eu já era batizado. Foi uma celebração muito simples. Eu, ela, meu tio, sua esposa, o primo e o padre. Dadas às circunstancias dela brigada com a família não vimos motivo para comemorar. Não teve festa nem nada.

A gravidez foi muito complicada, pois Nadia apesar de me amar se ressentia por estar afastada da própria mãe. Ela passou mal durante toda a gestação. Sim, é claro que sua mãe podia ter filhos. Certamente o marido que a repudiou é que não podia te-los. Ela até então jamais desconfiou porque supostamente ele já tinha um filho com a outra esposa. Nadia era a segunda. A religião islâmica permite ao marido até quatro esposas.

Apesar de inúmeras dificuldades que tínhamos estávamos um ao lado do outro. Nós nos amamos muito. Quando você nasceu sua mãe faleceu durante o parto.

Fiquei muito deprimido. Você nunca teve culpa de nada, mas no inicio eu também a rejeitei. Minha tia, esposa de Franchesco me ajudou a cuidar de você. Depois ela me apresentou Fátima, voltei pra faculdade, me formei e o resto da história você já conhece.

Papai terminou o relato. Estava ofegante e lágrimas banhavam seu rosto. Depois disse:

_Me perdoa. Eu sempre te amei minha filha. Sempre quis te contar, mas Fátima jamais permitiu. Guardei essa historia, esse segredo em respeito a ela. Sei que nunca a amei da mesma forma, mas ela fez o que pode para te criar como filha.

Claro que perdoei. Entendi o que papai falava. Entendi e admirei a grandeza daquela mulher, minha mãe de criação. Mesmo vivendo a margem do amor de outra mulher ela se fez forte e me criou com seu amor. Talvez parcial, ainda assim, amor.

Fiquei muito comovida e agradecida por meu pai dividir comigo a sua história. Compreendi o seu dilema e medo na ocasião da morte de sua segunda esposa. Sua companheira. Necessidade de contar e medo de morrer sendo o único portador desse segredo. Papai precisava me contar e eu tinha o direito de saber, por isso pediu-me a foto.

Hoje sei quem sou. Sei porque minha mãe me teve. A pergunta que sempre me intrigou e estava escondida, a espreita de meu inconsciente “Porque minha mãe me teve se não me ama?” finalmente teve resposta. Sou filha de Fátima, não por nascer de seu ventre. Sou sua filha por uma opção sua. Não há prova de amor maior. Apesar dos erros, hoje sei que ela me amou.

Como disse, sei quem sou. Sou Nádia, um nome de origem eslava que significa esperança. Represento a esperança que meu pai teve de vencer preconceitos e ser feliz ao lado da mulher que amou. Represento também a esperança de outra Nádia, minha nova mãe, essa a de reunir novamente sua família.

Cheguei em casa e contei a Charles, meu esposo, tudo o que tinha ouvido e descoberto sobre mim. Charles me abraçou e adormecemos assim, com minhas lágrimas repousando em seu peito.

Pietro Negrette morreu naquela madrugada. Talvez tenha finalmente se juntado a Nádia, seu grande amor. No céu um lugar que imagino não há distinção entre religiões e onde todos permanecem unidos pelo amor.