A Toalha
A mesa estava pronta! Nunca havíamos estado tão distantes, antes, um do outro. O casamento, esse oceano enganoso de ilusões que se diz sempre dulcíssimo, embaça-se e requer reconquistas. O fruto saboroso, quando apodrece, é além de amargo. Se não é posto sob a terra morna para germinar com as chuvas frias do inverno, acaba-se com o verão, ressecado, em imprestável secura solitária. As imagens podem infernizar o que não se quer lembrar mais. As cicatrizes ficam e são tão reais que podem reagudizar velhas dores esquecidas. Mas também sei que tudo pode passar como uma nuvem levada pela força do vento. Há amigos que nos sopram; há conversas que são ventanias..., até tempestades. Naquele momento, qualquer vento forte desarrumaria a bonita toalha portuguesa, tão velha quanto o nosso casamento.
Uma toalha de linho puro! Flórida e bela com seus inúmeros desenhos portugueses. Galos encarnados, rendas avivando o tecido, uma obra de arte. Sempre foi guardada a sete chaves, pelo exagero de um zelo.
Seu bordado requintado falava da extrema beleza da arte com que fora feita. No centro, um castelo medieval realçava um gramado desenhado ao seu redor. Cercando-a, em suas quatro pontas, os galináceos e os bicos de renda da Ilha da Madeira. Ela havia sido tecida lá. O linho bege era discreto, como se querendo deixar o azul e o vermelho e o verde dos desenhos outros se avolumarem ao nosso olhar.
Casamos em dezembro. Seis meses antes, ela e eu estávamos à porta da casa de minha sogra, no interior do Estado, quando o vendedor passou arrastando a mala cinza, cheia de toalhas de mesa e forros de cama. Ofereceu-nos e ela recusou-se até a olhar sua mercadoria.
-Não, filha, olhemos...
-Essas coisas vendidas às portas, não são lá de boa qualidade
-Mas não nos custa olhá-las.
-Então as veja. Enquanto isso, vou lá dentro, apanhar um objeto que deixei no alpendre.
Um senhor de meia idade, cabelos grisalhos, fala mansa e compassada, arrastando um forte sotaque da ilha, abriu a mala. Ainda havia muita mercadoria a ser vendida.
-Está ruim demais vender tudo isso por aqui. Ninguém conhece a qualidade do que vendo. Querem comprar quase que de graça. Não sabem o que é linho, quanto mais essas preciosidades feitas na ilha. Essas cousas vieram de além-mar, são peças portuguesas de valor conhecido por qualquer pessoa de bom gosto. Vês?
-Sim, são belíssimas! Casaremos em dezembro!
-Então não há hora melhor de comprar algumas delas!
-Não temos lá tanto dinheiro.
-E eu estou cá de passagem. Hoje será o meu último dia por aqui. Não posso dividir valores. Tudo o que vender terá que ser à vista!
Encantei-me com todo o material exposto. Nem podia, mas comprei tudo. Teve que levar alguns cheques meus, dada a soma da compra ter sido alta. Meu problema agora era como dizer-lhe que havia me endividado, com a única intenção de presenteá-la com os lindos jogos de toalha, guardanapos originalíssimos, forros de cama que mais pareciam representar sonhos. Achei que o esforço era válido. Aquele presente lhe seria inesquecível através dos longos anos que pretendíamos viver casados. Quando eu pedia para que ela os usasse, sempre ouvia a desculpa de que numa ocasião de festa ela os usaria. E o tempo se encarregou de guardá-los. Nunca os vi enfeitando a mesa dos nossos jantares mesmo quando recebíamos visitantes ilustres. Permaneciam guardados e intocáveis no maleiro de um dos guarda-roupas em um dos quartos da casa. Por mais de uma semana, relembro, ela reclamou da compra. O vendedor português saiu meio entristecido. Além de ter ouvido dela que eu não devia ter comprado nada daquilo, sentiu que o preço oferecido por mim e aceito por ele, havia sido pequeno demais. Eu notara sua tristeza, mas havia comprado tudo. Lembro-me de que até a sua mala eu havia pedido que entrasse no negócio. Ele, sorrindo, negou o meu pedido e se despediu gentilmente, prometendo um dia voltar. Aquele moço de tez alva, face avermelhada, cabelos loiros e caídos sobre os ombros, nunca mais o vi. A imagem dele carregando a mala, agora vazia, leve, batendo em sua perna direita, essa ficou bem gravada. Andou até a esquina da rua quando, de um automóvel parado, parecia um táxi, saiu uma senhora de meia idade, ajeitando os cabelos, recebendo-o com certa apreensão. Ele pôs a mala no banco de trás do automóvel, pediu que a senhora fosse para o outro banco da frente e ele, ligando o motor do veículo, saiu com o vento. Foi para algum lugar para nunca mais voltar a vender-nos absolutamente nada.
-Entra! Já comprasse essas porcarias todas, não foi?
-São obras belíssimas, meu amor.
-E dívidas horrorosas...
Nem sei ao certo quanto tempo se passou desde aquela compra. Andamos com o tempo e a vida, amadurecemos para, só agora, descobrirmos que a história de uma vida possui capítulos indigestos e tristes.
Na mesa, sobre a linda toalha portuguesa, apenas 4 cálices: dois de vinho e dois de água. Eram de tinto – pelo volume sabia! Quando fui convidado por ela a sentar-me à mesa é que fiquei sabendo que nossos rapazes haviam viajado para o interior. A empregada, dispensada. Só havia ela e eu, em casa. Talvez também estivesse entre nós, invisa, uma terceira alma onisciente.
Senti um cheiro divino de bacalhau ao forno. O vinho que ela serviu era do Porto. A toalha, de terras afins – só os cristais falavam d’outro país. Convidado, sentei-me à cabeça. Como de costume, abri os guardanapos, pus sobre as pernas, desci as mãos às coxas e esperei que ela me servisse. Assim o fez. Em meu prato colocou uma porção generosa do peixe, o que não costumava fazer. Preocupava-se com minha saúde. Deitou o tinto no meu cálice e tragamos sem brindar. Eu desconfiei de alguma coisa, quando senti a ausência do brinde e o seu fácies trancado.
-Essas toalhas, esses guardanapos estão e foram postos, como é do seu imenso gosto.
-É..., eu sei...
-Não os ama tanto, não é?
-Você não?
-Nem sei se gosto mais de mim!
-Não ouse dizer uma coisa dessas. Nossa família é tão linda, nós te amamos tanto. Pensei...
-O que pensou?
-Que queria comemorar hoje algo especial...
-E quero, sim!
-Diz o quê!
A alma minha congelou. Doeu-me o coração ouvir seu discurso forte. Não quis acreditar, mas tive que fazê-lo. Chegara ao fim uma linda história de amor. O pior de tudo isso é que nos amávamos muito. Tínhamos sonhos para enfrentarmos, juntos, uma velhice alegre. Reuníamos-nos em quase todos os fins de semana. Ela expulsou-me de casa após o jantar português. Não tive para onde ir, a não ser viajar até o interior e ir dormir na casa de minha sogra. Lá, contei-lhe tudo. Meus dois filhos estavam em casa dela. Choraram, mas desacreditando- me pelo que tinham ouvido de mim. Era uma sexta-feira. Cheguei na casa de minha sogra às duas da manhã. Ficaram espantados. Ninguém mais dormiu àquela noite. Acontecia um fato inusitado. Uma coisa estranha. Muito estranha.
Passei a estudar a depressão. Não sabia que um mal pudesse ofertar tanto prejuízo a uma família feliz. A toalha da mesa foi a navalha do enforcamento. No sábado, às nove da manhã, é que ficamos sabendo da cena trágica. Não permiti que meus filhos vissem sua mãe pendurada e roxa. Ajudei a polícia a retirar o corpo pendurado.
Desde esse dia que, de vez em quando, quando estou lendo ou refletindo, vejo o vendedor de toalhas passar à minha frente. Ouço as reclamações de Lívia. O sabor do bacalhau, não o sinto mais; na lembrança – o peixe se fez carne, e a carne se fez verbo, um verbo que não se calou nunca mais! As duas carnes eram iguais em minha memória. Nunca mais traguei vinho algum, meus filhos vivem e trabalham em Lisboa. É comum passearem pela Ilha da Madeira. Adulam-me para estar com eles. Não aceitei ainda o seu convite porque o vendedor português ainda não saiu de vez da minha porta. A toalha? Durmo e acordo com ela todas as noites. Nunca deixei que a lavassem, para que esta história não se apague de tudo...