NO VENTRE DO JARDIM
É primavera. A calçada está um tapete de jacarandá. O vento faz travessuras, dançando o tapete e mudando o desenho. Pela manhã, a vizinha perguntou onde estavam plantados os meus chás? Sumiram, respondi.
Chego à janela e fico admirando meu jardim. Na verdade, jardim é tão somente o apelido do aglomerado de plantas que ocupam o pequeno espaço. É assim que gosto. Flores de cores vermelhas, rosas, laranjas, amarelas, azuis, roxas. Que lindo, penso. Mesmo do computador, é só mover a cabeça e contemplar o colorido. Pássaros nas árvores próximas fazem a sinfonia.
Desloco o pensamento para o mundo, para a Humanidade, e faço uma comparação. Meu jardim e o mundo têm semelhança. São emaranhados de coisas, cores, sons, pessoas, animais, segredos. Observo as pessoas. Multifacetas, multicores, matizes de emoções, vidas, sentimentos, no espaço chamado Terra que gira minúsculo entre as galáxias.
Meu cérebro também é assim. Um entrelaçamento de plantas, com ramificações diversas, fazendo as sinapses que dão vida às ideias, lembranças, vivências, alegrias, dores e mistérios.
É o caos no mundo, no jardim, no meu cérebro. E isto faz com que o valor das conquistas se sobreponha. É pensar assim. Bom se fosse verdade, bom se meu jardim não fosse apenas engodo, o externo primaveril que encobre, ilude.
Agora, nem mais estremeço; somente contemplo a maravilha. Anestesiei remorsos, culpas, que por tempo corroeram-me.
Quando Geraldo riscou o meu caminho com olhos de cativar, não me foi possível lucidez suficiente para um alerta. Talvez a fala, talvez o porte elegante, talvez a beleza do sorriso, tudo englobado no homem jovem que faltava em minha cama.
Dizia que me amava com olhos cheios de enganações. E eu bebia cada palavra, cada gesto, cada beijo. Às vezes, um sino distante badalava no interior de uma célula, mas não chegava à superfície. Meu corpo pedia amor, e ele dava sexo. Era especial em tudo que fazia. Um artista. A voz um tanto rouca, aveludada, dizia que me amava, que eu era tudo para ele, a pessoa mais importante da sua vida, seu bem-querer, sua menina. Eu ria, faceira, embevecida, enganada. Foi levando tudo de mim; meus bens materiais, minha alma, minha vida. E eu continuava a sorrir.
Até que.
Noite de aniversário, festa, alegria. Somente nós dois, nada de estranhos para perturbar nosso amor, dizia. A mesa requintada, bebidas, palavras, a lucidez fugindo, e ele também. Depois do sexo ardente, dormi desmaiada.
Pela manhã, percebi que seu lugar na cama estava vazio. Chamei-o pela casa, percorri o jardim, olhei na frente, nos fundos. Nada. Voltei ao quarto e sentei-me na cama. Pura confusão. O álcool ainda não havia cessado o efeito, a mente em torvelinho, o medo. Olhei para o espelho. Ali, em letras vermelhas, o resultado: velha idiota, trouxa, besta, acorda. Tenho nojo de tudo o que tive de enfrentar. Basta. Viajo para a Europa, sem retorno.
O vermelho foi dançando, escorrendo em sangue pelo espelho, assim, como sangrava meu coração. Tudo foi ficando embaraçado. Não vi mais nada.
Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o espelho, brilhante e sem manchas, limpinho, a lindeza de sempre. Graças a Deus, pensei. Foi somente um pesadelo.
Fui ao banheiro. Deixei o chuveiro escorrendo por um tempo, levando as mágoas. Quando voltei ao quarto, vi as malas.
Hum... Então...
Novamente, procurei-o pela casa. Nada. Precisava investigar. Na bolsinha de fora da mala, as passagens para o dia seguinte.
Então foi isto. Tão desesperado ficou para me largar que foi um dia antes para o aeroporto. Percebido o engano, voltou a tempo de limpar o espelho.
Passei a manhã planejando. Nada ia dar errado. Queria me deixar, pois me deixaria.
Na cozinha, esmerei-me preparando seu prato preferido, sua bebida preferida, tudo com um tempero extra.
Quando chegou, olhou-me sem saber se sorria ou não. Recebi-o com alegria, beijei-o na certeza de ser o último beijo. O olhar do traidor era de pura desconfiança. Teria ou não visto o bilhete no espelho, se perguntava. Mas meu rosto, coberto por máscara de alegria, não lhe deu resposta.
Durante a tarde, trabalhei no jardim. Arranquei os chás e as flores. Fiz o buraco. Comprei novas mudas de flores, vasos grandes e terra, muita terra.
À noite, arrastei-o para a sepultura. Coloquei a mala também. Depois, cobri com terra e plantei as flores.
Os chás não. Poderiam crescer com o gosto dele.