A cruz da dançarina
Era uma sexta-feira comum como qualquer outra e, extraordinariamente, eu estava, pela manhã, no meu consultório. Um amigo me ligou e fez um pedido: queria que eu atendesse a uma dançarina de uma banda sertaneja que, segundo ele, estava mal e em uma péssima situação financeira. Atendi-o prontamente e o orientei a levá-la às dez horas, ao consultório.
_Mande entrar a cliente.
Entrou na sala uma mulher muito jovem, cabisbaixa, com o corpo em posição de defesa para tudo o que via à sua frente. Vestida num tailleur cinza, lábios bem pintados com um batom discreto, cor bege, cabelos um tanto descuidados.
-Bom-dia, doutor.
-Bom-dia. Sente-se. Vamos conversar. O que lhe trouxe até aqui?
Passei aproximadamente uma hora em anamnese com aquela jovem, o suficiente para saber que nada sei ainda das cruzes que pesam nos ombros do povo do mundo. Profissão: dançarina; idade: vinte e seis anos, nome do pai?
-Doutor, eu não tenho pai.
-Como não tem? Você é um clone?
-Não. Explico: minha mãe tinha dezoito anos quando foi estuprada por um jovem violento. Morto pela polícia, ela nem teve tempo para identificar seu cadáver. Não sei quem era nem onde morava e quem são seus parentes. Minha mãe tornou-se alcoólatra e eu procuro vencer a minha solidão profunda, dançando. Já tentei matar-me, mas na hora H não achei a coragem. Danço para afastar o medo que tenho de minha existência.
-Mas, você está aqui com alguma queixa, não é?
-Sim, Claro! Tive uma crise de epilepsia enquanto dormia e cortei um pedaço da língua. Não estou conseguindo dançar nos shows do cantor que acompanho. Sinto câimbras nas panturrilhas. Ganho quarenta reais por cada show que faço. Se não os fizer, vou morrer de fome. Estou aqui para que o senhor me tire essa inchação nas pernas e uns tremores no corpo que venho sentindo ultimamente. Estou deveras debilitada.
Uma jovem bonita, corpo atlético, carregando um fácies de sofrimento, cruz pesada que um dia a vida lhe ofereceu. Queria tão pouco de mim, tinha tanto amor no peito dolorido recém-maltratado pela perda de um grande amor que lhe valera para esconder sua tristeza por mais de dois anos. Ele era dançarino no mesmo grupo e hoje estava de caso amoroso com outra amiga também dançarina.
A vida nos é por demais esquisita, cheia de mistérios poucos sondáveis, anteparada por uma cortina grossa e fosca; jardim para uns, deserto para outros. A felicidade tem ponteiros vagarosos que vez por outra param e não nos adianta dar-lhe corda para funcionar. Pára, fere e, só no caminhar da cruz, cede, algumas poucas vezes, para nos aliviar, quando parecemos estar já tão perto da morte.
Não sei como as pessoas que não têm Deus dentro de si conseguem sobreviver a esses pesadelos horrendos. E quando necessitam dançar com a cruz nos ombros? A dançarina X é um bom exemplo dessas criaturas. Veio à procura da salvação, mesmo sabendo que a sua grande cruz, dada pela mácula feroz de ser ela a filha de um estupro, não lhe deixaria jamais de pesar ao ombro. Olhei-a emocionado ao fim da consulta e lhe perguntei:
-Diga-me dez passagens boas em sua vida. Alguns momentos felizes que você teve.
-Será que acho dez deles, doutor?
-Diga-me então, cinco.
-Vou ver se acho tudo isso.
E ainda conversamos por uns vinte minutos e vi a jovem sorrir pela primeira vez quando me falou da felicidade que teve quando, no seu primeiro show sobre o tablado de um caminhão, foi aplaudida efusivamente após terminar um número de dança. Falou de um grande amor que teve e do choro feliz que sempre tem quando abraça a mãe, alcoólatra, nos poucos dias em que está lúcida e choram juntas agradecendo a Deus por estarem vivas dentro de uma mesma história.
Olhei-a no fundo dos olhos que me reverberavam sofrimento e tristeza e encontrei, não sei como, estranhas palavras para consolá-la:
-Talvez, querida, sem esse estupro que tanto a machuca no seu dia-a-dia, você não tivesse vivido esses momentos felizes que você acabou de contar-me. Dizem que todo mal traz um bem. Aprenda a tirar sua cruz dos ombros, ao menos enquanto estiver no palco a dançar ou abraçando sua mãe nos seus poucos momentos de sobriedade. Compreenda que são tantos os que carregam cruzes pesadíssimas, que a sua pode tornar-se pequenina diante delas. O que notei em você é que parece que não tem amor por você mesma. Quando a gente não gosta da gente, é somente a cruz que gosta e aí, pesa tão profundamente que faz calo até na alma e o médico não pode curá-la sozinho. Eis aqui alguns exames para você fazer. Retorne-me com eles
-Mas eu não tenho dinheiro para fazê-los.
Liguei para um amigo querido e ele se prontificou a atendê-la gratuitamente. E feito tudo isso, senti que minha cruz estava levíssima nos ombros, por dois simples motivos: conhecia meus pais e era eu quem a estava ajudando.
É bom aliviar o peso da cruz alheia,quando achamos dentro de nós essas forças misteriosas que só podem nos chegar, vindas de um Deus protetor e vivo que parece habitar sobre nuvens doiradas do mais puro amor. Sobra-me tanto fôlego ainda, não porque a minha cruz seja tão leve, mas porque meu coração é uma alavanca cheia de sentimentos bons que me dão forças para suportar as dores alheias que porventura cruzam o meu caminho, também cheio de dor.