Mulher de mim
Foram quase vinte anos de um casamento feliz, ou melhor, que eu achava ser feliz. Nunca pensei que vinte anos de amor pudessem se acabar em vinte minutos, nunca imaginei que algumas poucas palavras pudessem desfazer milhares de outras em tão pouco tempo. Me debrucei desolada sobre o retrato dele, como podia ser tão sínico, como podia ter tido a coragem de me enganar por tantos anos? Me perguntei tudo isso, mas as respostas não vieram. Continuei a chorar, as lágrimas caiam em longas cascatas sobre o tapete que ele me deu de presente no Natal. Olhei para todos aqueles objetos, para áquelas paredes brancas, recheadas de quadros, fotos, lembranças de um castelo de ilusões. Derrubei a taça que estava na minha mão, o vidro partiu-se em mil pequenos pedaços, cortei a mão e meu sangue se misturou áqueles estilhaços. Aquilo me trazia tórridas lembranças, de dias em que passávamos horas e horas fazendo planos, imaginando nossas vidas. Rolei sobre os vidros, não me incomodei com a dor que eles provocavam ao entrar em contato com a minha pele sensível. Muito sangue, todo o meu sangue se espelhou pelo tapete, senti que me alma foi junto com ele. Meu ar, meu único suspiro, tudo se tornou rarefeito. Acho que morri, passei horas acreditando nisso, até que um vento gelado invadiu a sala, meus pelos se eriçaram, a vida retornou a minha face. Era o sopro de Deus me trazendo de volta, me dando outra chance para ser feliz. Me levantei, segui a minha própria trilha de sangue até a janela, fechei-a e fui tomar banho, eu precisava me limpar, me limpar dele, me limpar de mim, me preparar para que outras mãos me tocassem, para que outra boca me beijasse, para que outros votos fossem feitos. Eu precisava voltar a ser mulher de alguém, ou simplesmente ser mulher de mim mesma.