Obsoleta

Havia uma idosa sentada na varanda de sua velha casa. Uma casa pintada há anos por um homem hoje esquecido, bem como as cores da casa propriamente dita. O branco das paredes há muito tornara-se amarelo ou algo semelhante a um marrom, um marrom podre e sem vida.

Ela balançava em sua cadeira. A cadeira forjada pelas mãos de seu filho,morto em guerra, mas antes morto na mente da idosa, uma vez que ela tão pouco se lembrava de sua fisionomia desde que partira para cumprir seu suposto dever patriota. Para frente e para trás ela balançava na esperança de que um embalo a levasse a outro mundo. Desconhecido e novo. O mundo dos sonhos.

Mas seu corpo cansado e fastio de idade não colaboravam e ela ficava a maior parte do tempo imóvel, da mesma forma que o restante de sua vida. Vivia linearmente, como se tivesse outro ofício que não o balançar parado de sua cadeira, metáfora suja de sua vida. De súbito, levantou-se e foi em direção ao quarto, o último cômodo da casa, ao lado da porta que dava para o quintal. Um quintal pintado das folhas secas de outonos passados. Muitos outonos.

Ela deitou a cabeça no travesseiro sem fronha, pois ela o tirara há tempos. Não queria que cobrissem as lágrimas, não gostava de representações das cicatrizes de sua triste vida monótona. Uma vez deitada de bruços na cama decrépita, não permitiu mais lágrimas a verter, porém forçou o rosto contra o travesseiro, não que tivesse tanta força, mas o peso de sua mente contribuiu para que não mais levantasse a cabeça grisalha. Seus olhos lúgubres tardariam a ver outra luz, não que desejasse, no entanto, seu espírito desmazelado haveria de ver somente uma coisa antes de permitir que sua respiração uma última vez estertorada…Cessasse.

A morte para ela não seria surpresa nenhuma, poderia ser em qualquer lugar, a qualquer momento e de qualquer jeito. Em sua idade já não teria mais o privilégio de sentir medo dela, pois das visitas, era a mais esperada.

Seus olhos cansados percorreram pelo cômodo vazio e arrimaram nas lembranças presas em fotografias que jaziam nas paredes, de pessoas que jaziam no cemitério, pessoas estas que em sua jovialidade prometiam serem eternas. Mesmo que o gosto deixados por eles fosse doce, a solidão o fazia amargo e triste. O desprazer de ser a vivência derradeira dentre os seus, era visível em cada ruga do rosto pequeno e murcho. Sua existência estava comprovada em objetos frios, cartas amareladas, calendários de vinte anos atrás, relógios parados e outras bugigangas lacônicas guardadas em caixas prontas para serem esquecidas.

De insônia não sofria, embora o sono da morte nunca quis fechar-lhe as pálpebras. Comia pouco, e nem se lembrava que tomava remédios. Sua única paixão ainda vivia: as flores. Felicidade remanescente que ainda podia tocar, pequenos prazeres que brotavam nas janelas. Se alegrava ao vê-las, contudo se lastimava quando morriam, mas também não gostava da atitude egoísta de prendê-las para si condenando-as sob telhados, a cada dia um minuto a menos. A vida a fazia ver mortes. Não deixava saudades em ninguém, pois ela nunca se fora.

Levantou-se lentamente de onde pensara ser seu último leito, e com certa dificuldade arrastou-se para a sala quando se lembrou de que regar as plantas era necessário, ao contrário dela, as flores precisavam de alguém. Passou pelo o quarto e o corredor se esquivando dos móveis apodrecidos, ao chegar na sala uma dor no peito a fez sucumbir ao chão. Não gritava, pois desaprendera a falar ou grunhir há anos, mesmo o rombo no peito sendo quase insuportável.

Lembrando-se de seu convite soturno, não deixou de imaginar uma penumbra de manto negro a encarando pela janela sobre as flores. Em seu delírio para se recordar, a palavra 'entre' se formou na boca gélida isenta de lábios. Calmamente a força e dor foram abandonando seu corpo inerte quando tudo se arrefeceu em um eterno silêncio.

Meses depois a família ausente a encontrou-a com um sorriso sereno no rosto, suas coisas adormeciam em caixas de papelão, como deixara. Mobílias comidas pelas traças e colchões sem lençóis. Não havia testamento, somente dinheiro que pagaria seu funeral em cima do criado mudo. Ninguém se importou em regar mais as flores.

Exorcista e Thays Martins de Paiva
Enviado por Exorcista em 09/07/2013
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