CONSTRUÇÃO

Caminho pelas calçadas da cidade.

Meu nariz arde, ressecado pela poeira que as construções que tomam conta das ruas ergueram. Inconscientemente reduzo meus passos. Percebendo isso paro conscientemente de caminhar. Olho para minha sombra projetada na calçada pela luz pálida que sai do alto do poste. É uma das poucas lâmpadas antigas que ainda restam na cidade – exceto é claro, nos bairros periféricos; por lá tudo ainda é muito velho e maquiado de “novo”.

Olhando para cima, atrás de mim, um pouco à direita; vejo o poste velho. Talvez estivesse ali desde a minha infância, ou quem sabe muito antes. Quantas vezes passei por ele sem notá-lo? Havia uma fileira deles, este foi o ultimo que restou. A lâmpada de mercúrio emite aquela claridade estranhamente nostálgica. Sinto uma tediosa saudade instaurar-se em mim; lenta e sinuosa. Uma desconhecida sensação.

De meus fones, o som do trompete de Stanko reverbera pelos meus ouvidos. Ao fundo, ouço solfejos de piano conduzindo a base. A melodia embala meus batimentos cardíacos, levemente compassados, me desexteriorizando da realidade que me cerca.

O poste está esquecido. A degradação o consome; mas a luz ainda está lá.

Meus olhos procuram pela Lua. Mas hoje as estrelas estão sozinhas. Vejo nuvens rápidas correndo pelo céu. Vermelhas e carregadas. Uma brisa fria me ricocheteia.

Aqui o clima é estranho.

Há menos de meia hora, suava com poucas passadas. Um amigo diz que é porque eu fumo demais. Engraçado ele dizer isso enquanto suava em bicas.

O Sol queima todo esse concreto à minha volta durante todo o dia. Com o ocaso a noite esfria. Neste instante, frio e calor se digladiam em um duelo quase que imperceptível. Acho que ninguém percebe isso; saem de casa agasalhados, caminham um pouco e logo arrancam as blusas. Mais algumas passadas e logo as vestem novamente, com os dentes a tilintar.

O clima anda estranho e as pessoas nem sabem mais o que sentem. Talvez nem saibam que nome dar para a coisa, tentam explicar, mas as explicações são todas arcaicas. Nada muda, tudo parece estagnado.

E a noite fria continua tentando se apossar do concreto cheio de calor.

Se o silencio imperasse nesse instante, seria possível ouvir a cidade estalar ao redor. Mas as matizes de sons que tomam conta das ruas são mais perceptíveis.

O som que enche meus ouvidos é relativamente alto. Mas não é o único som a entrar em minha cabeça. Do outro lá da construção, na rua, o zumbido do engarrafamento pode ser entreouvido tentando sobrepor-se às notas agudas e prolongadas do trompete. Os carros estão andando de dois em dois centímetros. Os motores quase em ponto morto soltam aquele zumbido característico que perpassa o corpo físico.

Impossível se livrar dele.

Deixo de lado fúteis reflexões. Meus olhos analisam agora, a imponência da construção à minha frente. Um viaduto elevado, por onde deverá passar uma espécie de trem. Descomunais vigas de concreto, sustentadas por colunas de três andares, formam o esqueleto da rua elevada.

Mais concreto.

Até quando estas vigas vão ficar ai suspensas?

Ninguém sabe se a obra irá ser concluída. Andam acontecendo coisas enquanto todo mundo está ocupado com coisas particulares.

Abaixo das vigas, um grupo de operários, vestidos com uns macacões laranjas, aparentam estar em intervalo. Alguns têm marmitas na mão; a comida é jogada na boca e engolida quase sem mastigar. A Coca-Cola ajuda a empurrar pra baixo o que ficou pelo caminho.

Um dos operários acende o cigarro. Por hábito, puxo minha carteira do bolso. De repente, os operários explodem em gargalhadas.

Do que riem?

Não me interessa. Estou mais interessado no chão. Toda a rua foi destruída para que se construísse o viaduto. O asfalto foi arrancando por maquinas em enormes blocos disformes de pedra e piche. Por aqui não há mais tráfego. Do lado de lá do viaduto, a calçada foi improvisada como via, por onde só roda um automóvel por vez.

O lugar por onde me habituei a caminhar destruído para dar lugar a essa monstruosa obra.

Volto a olhar o poste. Eis agora um símbolo do passado. Tudo está se transformando. Estão trocando o cenário. Logo, outros caminharão por aqui e tudo vai estar diferente; até novamente mudar. Quem sabe alguém experimente sensação semelhante à que me acomete agora, e crie também para si, um símbolo de tempos idos, para que não se esqueça o que constitui sua existência gratuita em meio à contingência urbana.

Olho novamente para minha sombra. Recomeço a caminhar cabisbaixo. Um cheiro gorduroso invade minhas narinas. À beira do que era antes o asfalto me oferecem um lanche sujo, apesar da fome eu recuso.

Continuo a caminhar embalado pela musica.

Raphael Rodrigo Oficial
Enviado por Raphael Rodrigo Oficial em 30/06/2013
Reeditado em 30/06/2013
Código do texto: T4365348
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