A cocotinha
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A cocotinha
Todo cocó, no prosaico entendimento do meu tio Quermezé, era esquisito demais da conta! Até os cocoricós, que davam as galinhas indianas e do pescoço pelado que minha tia criava, eram suficientes para o tio se abespinhar e gritar, ainda na cama:
– Oh, muié de Deus, não tem como essas disgramadas mudarem o tom dessa cantaiada toda, não, uai?! É Todo dia essa ladainha! Ainda acabo com esse ritual de galinha cantadeira nessa casa!
– Quem canta é o galo, homi! Você num sabe disso!
– Essa entonação que acorda a gente é de fêmea, Zefinha. É de fêmea! É de fêmea. – insistia tio Quermezé.
Dentre as muitas esquisitices do meu tio, a mais refinada era a de repetir certas palavras e expressões por três vezes, num verdadeiro ritual. Feito isso, ele se acalmava e mudava de assunto como se nada tivesse acontecido. Era repetir as benditas três vezes e a calmaria se instalar onde ele estivesse – calmaria apenas para ele. Apenas para ele. Apenas para ele...
Entretanto, a fêmea que tirou, de verdade, o sono do tio foi minha prima Catharina. Quando a cocota visitava nossa família no Sítio Aleijadinho Consertado, aqui em Tiradentes, o velho esbugalhava os olhos! O tio era daqueles velhos desavergonhados, cheios de graça insossa, que não medem as palavras. Além das muitas manias, piadinhas e sem-vergonhices, sempre esperávamos dele algumas tiradas, certeiras e grotescas, que nos matavam de vergonha. Ele nem ligava, mas quem da família estivesse por perto nessas horas já sabia que teria a obrigação de mitigar as consequências das grosserias. Quando gostava do que via, também elogiava sem rodeios! Infelizmente, tio Quermezé tinha a mesma sinceridade para falar dos defeitos das mulheres. Nunca me esquecerei de quando o tio reparou que o dedo do pé esquerdo da Lindalva – uma das moças mais cobiçadas da cidade – era torto! Se tivesse só reparado, ainda ia lá, mas ele viu e soltou o berreiro:
– Minha filha, seu dedo andou servindo de forma para pau de baladeira, foi? Eita que trem torto, sô! Isso é feio demais da conta! Eita, trem esquisito! Trem esquisito. Trem esquisito...
Quase morro de vergonha. Ia me desculpar com a Lindalva, mas o tio me interrompeu:
– Natália, minha filha, aquela ali é sua prima Catharina?
– Parece que sim, tio. Ela nem avisou que viria...
– Catharina! Catharina! Catharina! – grita o tio para a jovem que estava pegando as malas, logo após descer do ônibus.
A moça loira, de olhos azuis encantadores, volta-se para a direção da voz, sorri, prende os cabelos numa atitude mecânica as mulheres entendemos, e grita:
– Oi, tio!
Alvoroçado, igual pinto em merda, tio Quermezé já abre largo sorriso. Quando Catharina se aproxima e me abraça, ele solta a primeira (essa era a previsível) gracinha:
– Ah, cocota linda! Que cocota linda! Que cocota linda.
O brotinho de Paulo Mendes Campos caberia sem muitos ajustes ao perfil da nossa visitante Catharina. Quando nos mirava, quase nos fundia a consciência e os sonhos. Ela sorria, ingênua, mas maliciosamente, e sentia o torpor que nos causava – sentíamo-nos ridículos e impotentes, engasgados em nossa própria saliva. Aquela menina ‘lançava fogo pelos olhos’... E, para nossa agonia, recentemente alçara o primeiro voo nas asas da alteridade, razão da visita inesperada.
– Poxa, tio! Cocota é coisa da década de 70! Estamos em 2013! Se quiser me elogiar, que tal me chamar de gatinha, de filezinho, ou de tchutchuquinha, hein? – é a resposta da prima, ainda me abraçando e sorrindo. – Você está linda, Natália! – diz ela.
A tia morria de ciúmes da Catharina. Por isso, quando ela nos visitava, ficava no meu quarto, comigo, na casa dos meus pais – morávamos no mesmo sítio, em casas próximas.
Na mesma noite, depois que contei todos os elogios feitos à Catharina, enquanto íamos para casa, a tia resolve se arrumar para surpreender o tio Quermezé.
Na hora do jantar, familiares e agregados do sítio estão presentes – queriam ver a visitante. A tia aparece produzida com desvelo – batom vermelho tentação – e, sem delongas, pergunta:
– E então, meu amor, estou uma cocotinha?
O tio, sem pestanejar, responde, alto e bom tom:
– Ai, Deus! Acode, pai do Céu!
– Que foi, homi? – Interrompe a tia, assustada.
– Que marmota é essa? Que marmota... Que marmota.
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