SALIM ABOU ADIB EL RAFIR
Seu Salim estacionou a velha caminhonete Ford, com boleia de madeira e cortina de lona no local das portas, na pequena rua dentro da praça, entre o chafariz e a imensa gameleira, porque era o melhor local para aproveitar a sombra benfazeja da frondosa e mais que centenária árvore.
Pelo menos uma vez por mês, os habitantes da pequena e acolhedora Murucututu Açu, eram acordados pelo som dos estampidos da caminhonete que, descendo a estradinha esburacada, dava os tiros toda vez que se tirava o pé do acelerador.
Seu Salim dizia que era por causa da mola de seguimento de um dos pistões, que tinha se estragado pelos muitos anos de uso, e que não havia no comércio, por ser um modelo antigo, mas muito bom e que valia uma fortuna, se alguém quisesse comprar, ele podia fazer “uma brecinha, pem parratinha e brá baga dê muiiiita bês.”
- Salim jura brá deus qui já brocurô. Nom tem! Nom tem! Salim jura brá deus!
Era a mesma falação com as mãos espalmadas para o alto, bem acima da cabeça e olhando para o céu, por cima dos seus óculos redondos com armação de casco de tartaruga de pente, todas as vezes que alguém importante da cidade, reclamava dos estampidos do motorzão velho e enfadado da caminhonete.
A Praça Cel. Vergueiro, larga e arborizada, se compunha de três partes, sendo bem maior que dois campos de futebol juntos, com áreas gramadas, canteiros de gerânios e roseiras, ruas pavimentadas e calçadas decoradas com jarras florais, flores de lis, arabescos e desenhos geométricos em pedras portuguesas das cores creme e preta.
Entre as duas áreas de jardins o chafariz todo em pedra sabão, com a estátua de Netuno ladeada por quatro sereias e, na borda do tanque, onde carpas vermelhas e amarelas nadavam tranquilas, oito enormes bagres de cujas bocarras saíam os esguichos em direção a Netuno.
Na parte da praça, em frente à igreja, no meio do canteiro de rosas, sobre o pedestal de mármore, a estátua em bronze da professora dona Leopoldina de Sena, que foi a responsável pela alfabetização de toda aquela gente por mais de trinta anos.
De pé, segurando um livro aberto na mão esquerda na altura do ombro, (como se estivesse lendo em voz alta) e na mão direita, meio escondida nas dobras da saia longa, a palmatória que era seu argumento pedagógico e principal razão do aprendizado.
Na placa, escrita com letra cursiva, a frase predileta e diretriz daquela professora obstinada: “Aluno meu ou aprende, ou aprende”.
No outro canteiro, também sobre um pedestal de mármore, a figura de um tronco com duas corujas adultas, sendo uma delas com a rã no bico, como se estivesse alimentando os filhotes dentro do ninho com os bicos muito abertos.
Era a homenagem do povo de Murucututu Açu à ave que emprestara seu nome à cidade.
Bem em frente à praça, a igreja com duas torres com os sinos, cujo som servia de baliza para tudo o que se fazia nos arredores.
Nos lados, esquerdo e direito, o casarão que pertenceu ao Coronel, hoje transformado em museu. O colégio municipal Getúlio Vargas, a Farmácia Preciosa do professor Ronaldo, a venda do Sr Manuel e a padaria Flor do Alentejo do Sr João de Latrão, português, que ficava uma fera, espumando, quando alguém dizia João ladrão.
A simples troca de uma letra fazia toda diferença entre a santidade e a roubalheira.
Enquanto abria as três portas basculantes da carroceria baú, que serviam ao mesmo tempo de telhado e de expositor, seu Salim não atendia a ninguém, cantarolando alguma coisa parecida com – rummm malarrai, arraí, inharrai – possivelmente num dialeto de sua terra natal, totalmente incompreensível.
Depois de tudo exposto em mesinhas suplementares ou pendurado nas portas, seu Salim vestia o paletó marrom, surrado e com bodum de suor velho guardado. A sua camisa de manga comprida, sem colarinho, que em algum dia fora branca, ostentava no peito manchas de molhos de diversas cores. As pernas da calça preta sumiam dentro das botinas de cor indefinida.
No pé direito havia um buraco, para deixar do lado de fora o dedo mínimo, envolvido numa bandagem tão suja quanto todo resto.
Na cabeça, o chapéu vermelho, cônico, com o pingente preto que variava de posição todas as vezes que seu Salim falava ou mexia a cabeça.
Cada pessoa que se aproximava, seu Salim puxava do bolso do paletó a caderneta de vendas a credito e perguntava:
- Como se chama o mocinha? Salim brecisa sabê se seus conta está baga. Se nom bagô, Salim nom pode bendê nada. Salim nom podê fica zem dinheira. Salim brecisa recebê bremêro i bendê dispois. Quanto o mocinha Arzira bai paga hoje. Vinte real? Entom Salim zó bode bendê dez.
- Eu queria um sutiã de renda, o senhor tem?
- Salim tem o mélho, olhe esse aqui mocinha Arzira. Mélho breço. Zó quinze. O mocinha Arzira, baga cinco e Salim anota dez real.
- Tá muito caro seu Salim!
- Salim jura brá deus, que o mocinha Arzira nom bai encronta breco mai meno.
- Que conversa mole é essa seu Salim?
- Zí Salim querê engana o mocinha Arzira, Alá pota alma de Salim brá queima na mármore do inferno. Salim jura brá deus, Salim bagô catorze, zó bai ganha um...
E assim a maior parte do dia seu Salim atendia aos clientes.
Quase todos compravam para pagar aos poucos, dentro da mais perfeita tradição dos velhos mascates de língua árabe.
(continua em NA FEIRA DO VER-O-PESO. - colaboração da consóror Conceição Gomes - Curitiba)
(continua em BRAÇO FIXO. - colaboração do confrade Aristeu Fatal - Santo André/SP)
(continua em FÉRIAS DE SALIM. - colaboração do confrade Paulo Moreno - Londrina/PR)
(continua em CARRO DE BOMBEIRO)
(continua em DE BARQUINHO... - colaboração do confrade Aristeu Fatal - Stº André/SP)
(ver também) ACASSIN HASHID - colaboração da consóror Maria Mineira - S.Roque de Minas/MG