A loteria

A loteria

Era um homem bom, realmente um bom homem era. Assim encontramos uma pessoa simples, morador da periferia de Brasília. João. Quantos não se encontram por aí, ganhadores do pão de cada dia como heróis anônimos, por conseguirem sobreviver com o tão famigerado salário mínimo. Baixa estatura, por volta de um metro e sessenta e cinco em seus quase noventa quilos de muita cerveja e churrasquinho de final de semana. Calvo, bigodezinho e de bochechas extensa; típico brasileiro sofredor. Conhecedor e freqüentador assíduo de serestas. Bom no assunto, apesar da barriga cada vez mais crescente. Trabalhava numa oficina, como mecânico no centro da cidade. Quatro ônibus por dia, não pegava menos que isso.

Tinha por chefe em tal Silvina. Sujeito de pouca conversa e muita ignorância. Branco do tipo avermelhado, incapaz de um elogia e muito bom de crítica. Mais três funcionários completavam o time de crítica. Mais três funcionários completavam o time da oficina. Raimundo, Sebastião e Romero. Amigos de final de semana e cúmplices nas andanças da vida. E cada qual cuidava de uma parte do serviço, sempre sob o olhar atento e severo do impiedoso carrasco.

João era casado com Jurema, mulher simplória e de origem humilde. Dona de casa que cuidava do barraco de fundos em que viviam . Caprichosa de obsessiva, do tipo que limpa a casa quando não tem nada para fazer. Baixinha, muito tímida e de rosto largo; simpatia em pessoa, casal que realmente se completava. Opostos não se atraíram nesse caso. Sem filhos, alguma fatalidade do destino; falta de tentativa não era o problema. Iam tocando a vida conforme as possibilidades permitiam, do tipo de gente que se contenta com pouco, tudo serve e está bom,. Não precisam de muito para serem felizes.

Conheceram-se numa dessas serestas de fundo de quintal. O galã possuía mais desenvoltura, o peso ajudava na época. Chegou no salão, deu aquela espiada normal de quem está avaliando o campo do inimigo. Observou sentada numa mesa, perto da escada, uma mocinha de pernas cruzadas, cabisbaixa; ao lado de mais duas. Como que foi encanto à primeira vista. Pegou aquele pentezinho do bolso e deu uma penteada, na época ainda tinha cabelo. Bonitão que só. Deu uma ajeitada na camisa de botão de festa junina e considerou – se então preparado para a abordagem. Meio que de lado, assim, daquele jeitão ressabiado, deslocado, mas com muita vontade, foi o conquistador. Chegou perto, cada vez mais devagar e, numa voz minguada, quase não saindo, se apresentou:

- Boa noite, eu podia conversar com a moça? – dirigindo-se à outra que ao lado se encontrava, como que pedindo permissão. – Posso me sentar?

- O que você quer com a minha irmã?- retrucou a então apresentada irmã mais velha, talvez com ciúme porque a mais nova tinha sido a única a conseguir em pretendente até aquele momento.

- Só queria conversar com ela.

- O quê? Não está vendo que é nova demais? – a cobiçada senhorita encontrava-se na época com não mais de quinze anos recatadamente vividos.

Foi quando a terceira moça, prima das outras duas; interviu em favor do quase desesperançoso pretendente.

- Deixa de ser chata! – e deu um pequeno empurrão no braço da mulher entrave. _ O moço só quer conversar com a Jureminha...

Com ar agradecido e uma esperança das cinzas redescoberta, foi-se sentando logo, não dando mais nenhum espaço para questionamento por parte da amargura. Apresentou-se, e quase que a noite toda foi um monólogo. Perguntava e a resposta, quando muito, era um grunhido de sim ou não. Na vermelhidão de brasa na tez, dependendo da extensão da pergunta. Na despedida, ao tentar uma aproximação, com o intuito de dar um simples beijo na face; fora surpreendido com dois passos para trás e um abaixar de cabeça, que o pior dos criminosos, tomado pela vergonha, faria ao encontrar os pais da vítima.

Com muito custo conseguiu pegar o endereço com a prima, seu anjo da guarda na empreitada. Despediu-se da terrível irmã, que com desprezo retribuiu a gentileza. Não ligou, esperava tal atitude. O homem persistente consegue resultados grandiosos. Era disso que precisava para chegar àquele coração tão cheio de defesas e medos. Dois dias depois bateu à porta da casa que correspondia a anotação de papel que recebera da prima. Com a coragem do adolescente que sai de casa para procurar emprego na cidade grande, foi João ao encontro do que seu coração achava ser correto. Desajeitado, cheio de dúvidas; a mão pesava na hora de bater palmas. Mil questionamentos vinham à sua cabeça . Sobre o pai, a família e até sobre a própria moça. Será que ia conseguir? O que o esperava? Bateu... Aparece então na janela um homem com ar inquisitória(Considerando o corajoso pretendente um vendedor ambulante ou um pregador de uma igreja qualquer).

- Não estamos interessados em nada!Estamos sem dinheiro...

Fechou a janela sem dar maiores satisfações, deixando o pobre homem deixando o pobre homem apenas com seu constrangimento. Porem, não contente com o ocorrido, insistiu em uma frustrada tentativa. Chamou novamente. Pausa. Mais uma. Ate que...

- Meu senhor, acho que não entendeu que não estamos querendo comprar nada! Pela ultima vez. Pode me dar licença! – e com um olhar que aquele seria o ultimo aviso, completou. – Agora por favor, posso me ocupar com meus afazeres.

- Mas eu só queria...

Tomado pelo espanto, o delicado enfim descobriu que não se tratava de um vendedor, mas sim um homem a procura de sua filha caçula. Sentindo que o futuro estava chegando mais rápido que o esperado, foi logo tratando de cuidar do seu tesouro. Afinal de contas, o que aquele sujeito teria para conversar com sua filha mais nova. Inadmissível, uma menina apenas. Criança que ainda precisava dos cuidados e da proteção do pai.

- Quem quer falar com a Jureminha. – isso já encostado no portão, quase face a face com o suposto aventureiro que tentava explorar, em sua mente, seu tesouro ainda intacto.

- Sou amigo dela.

-De onde. Como a conheceu. Quem te deu esse endereço.

E entre questionamentos e nenhuma pausa foi-se p interrogatório tomando forma de uma seção de tortura. Explicações mal dadas, palavras fora do lugar que somente pioravam a situação. Ate que quando a salvação veio a mente. A prima seria o caminho a se seguir.

- Foi sua sobrinha que me apresentou para sua filha.

-Quem. A Cassia.

Não sabendo o nome da moça, tratou de concordar de imediato com a afirmação. Quando foi convidado a entrar na casa, mesmo com o ar contrariado do seu dono. Percebia que se tratava de uma família humilde. Somente três cômodos em seu interior: quarto, cozinha e banheiro. Neste ultimo entrava um, saia outro. Cozinha com fogão a lenha algumas panelas jogadas pelo chão, um em cima do outro. Uma televisão pequena, do tipo preto e branco, com um retrato em cima daqueles antigos. Certamente o homem de fato era o pai da Jurema, só que mais moço. Algumas mensagens espalhadas pela parede davam a religiosidade necessária ao lar tão desprovido de conforto material. Uma foto de Santo na outra extremidade do recinto e, em frente a porta, a figura grotesca do questionador com sua vitima.

Era Antenor seu nome. Por volta dos seus cinqüenta anos. Homem forte e grosso naturalmente. Vos grossa e endurecida como rugas em sua face, que o tempo tão cruelmente esculpiu. Mãos completamente calejadas e surradas perturbadora, igualmente ao ódio que deles saia. Barriga acentuada e um andar nervos, como que sem rumo. Poucas palavras, porem sempre reveladoras, de sua boca. Não era do tipo que falava para agradar. Nunca recebeu agrado de ninguém, muito menos da vida, sempre dura e incisiva. Conversavam durante quase uma hora e, quando um percebeu no outro um igual, começaram a se entender. Dois esnobadores falam sobre esnobação, dois bandidos sobre crimes e dois sofredores sobre a vida.

- Você veio... realmente você e corajoso! – essa foi a reação de Cássia quando reencontrou o aventureiro maravilhada com a desenvoltura do pretendente. Filha da irmã do pai de suas primas, fora considerada da família desde que seus pais foram assassinados por umas terras litigiosas lá de onde vieram. Do tipo que sorria com os olhos, menina faceira e alegre com ávida. O olhar transmitia sua bondade. Comunicava-se com facilidade, amigos não eram o seu problema. Magrinha e elétrica, ligada na tomada da alegria, apesar de todo o sofrimento que já tinha passado ate então em sua estada por aqui nesse mundo. Cabelos encaracolados, morena jambo quase para negra. Os olhos, alem da vivacidade, transmitiam uma paz e uma suavidade, e quem deles se aproximava contemplava a mais pura ingenuidade. Enleiava-se e inebriado ficava com a docilidade de tal alma. Um espírito perto dos anjos...

Ate mesmo o grosseirão entregava-se aos encantos da doce menina e, com um largo abraço, recebeu-a de sua chegada do trabalho. Questionada de onde conhecia João, a mesma inventou uma desculpa que era amigo de uma amiga, coisa assim, de improviso. O velho já estava simpatizando com o rapaz, não fosse entregar sua filha assim, de mão beijada, mas a experiência dava-lhe o conhecimento de reconhecer p caráter das pessoas. Aquele era bom.

Horas passando... A amargura e a ingenuidade juntas chegaram. Francisca chamava-se a irmã mais velha. De uma tristeza tão profunda e apavorante constituía seu rosto, que parecia uma foto envelhecida de cemitério. Sorriso, daqueles assim de lado, sempre com o recalque maquinando alguma maldade para quem estivesse por perto, e de preferência feliz. Primeira filha de Antenor, teve toda responsabilidade jogada para si quando a mãe apodreceu com o câncer e, três meses depois, a irmã do meio se suicidou enforcada. O velho pai, talvez sem intenção, acabou por sobrecarregar a então jovem moa quase que a culpando por tudo. O emocional se abalou e a amargura tomou-lhe conta da alma.

De olhar distante e frio, sempre procurando o ponto fraco nas pessoas. Acredito que para sempre ter uma carta na manga, caso fosse necessário. A comida servia de terapia e a vaidade não era seu forte. Uns tantos quilos a mais pesavam – na como o peso da mediocridade em que vivia, nem se podia culpá-la, nem o pai, nem a mãe; porque morreu. Culpa... De quem. Se alguém souber, diga-me, tentarei não ser seu inimigo.

Jureminha, a doce Jurema. Menina simples e o recato em pessoa. Ao perceber a presença do pecado em seu lar, fechou-se como a porta das cidades medievais aos bárbaros. Temesse, quem sabe que tal aventureiro saqueasse seus sonhos e esperanças e os levasse a uma terra distantes e, quando saceado de sua vaidade, iria embora e em outros recantos procuraria outras aventuras. Sintomas criadas e João foi cada vez mais tentando conquistar a confiança do pai, para que pudesse tentar entrar no seio da família. A bancada da direita era a prima e a irmã mais velha a oposição. A sorte estava lançada.

Com todos ali presentes o pai voltou a questionar o rapaz, só que agora na presença da moça. Estava disposto a passar por tudo de novo e quantas vezes fossem necessárias. Agora seria mais fácil, já que o motivo de todo aquele trabalho estava ali a sua frente, linda e pronta para ser sua. Fitando-a com insistência a pronta para ser sua. Fitando com insistência a recatada dama, queria mostra-lhe que suas intenções eram as melhores possíveis. Acreditava que a sinceridade poderia mostrar tudo o que sentia. Dirigiu-se ao pai e, em tom solene, falou:

- Senhor Antenor. Vim ate aqui com a intenção de chamar sua filha para sair. Quero que tenha certeza que minhas intenções com ela são as melhores possíveis.

As reações foram as mais variadas possíveis . Cada um ali presente manifestou, através das feições, o que guardava dentro de seu coração. A prima Cássia fez um ar de alegria incontida, torcendo pela felicidade de alguém, que para ela, o parecia ser tão boa pessoa. Francisca não conteve o seu escárnio diante da cena, a seu ver, uma demonstração ridícula de um sentimentalismo barato. O pai , desconfiado e ainda meio incrédulo, diante do ate tão inatingível acontecimento; ficou meio sem saber que decisão tomar. Mas era inegável que o estranho tinha angariado sua simpatia. Tinha também dado valor métodos por ele usados, sendo que era conservador ao extremo. O alvo do convite, nem precisa falar, corou e abaixou a cabeça. Algo irrelevante. Naquele situação a decisão certamente seria tomada pelo seu pai.

- Tudo bem rapaz! Você pode freqüentar essa casa ate eu te conhecer melhor. Sair com minha filha, só na presença da Francisca.

Aliviado e ao mesmo tempo decepcionado, não teve outra saída, a não ser aceitar as condições impostas. O duro seria ter sempre por perto a companhia da mulher entrave. Com certeza iria fazer o que fosse necessário para atrapalhar qualquer tentativa por ele elaborada. Mas não desanimou por completo. Tinha a seu lado a prima. Certamente quando saíssem a aliada não deixaria de acompanhá-los. Com freqüência então encontrava-se no humilde lar ao Senhor Antenor. Conversar com a moça, só dentro de casa, e tende como vigia a irmã mais velha, que habilmente fazia duas tarefas simultaneamente: seu tricô e a vigília.

Logo estava quase que sendo um membro da família. Gente simples e assim mesmo. Demora para pegar confiança, desconfia de todo mundo, normalmente já apanhou muito da vida. Mas se sentir que a pessoa e boa de coração e confiável, abre então as portas do seu mundo e a mesma torna-se parte integrante. Foi o que aconteceu. O velho viu o rapaz um filho que gostaria muito de ter, mas o destino assim não quis. Tornou-se um conselheiro um braço direito nos negócios da família. O pai da jurema possuía um pequeno mercado que vendia produtos básicos para o lar: um mini-mercado. Vendia-se materiais de limpeza, comida e mais alguns utensílios domésticos. Muitas vezes, quando ninguém poderia tomar conta do ganha pão familiar, João ajudava. Dava palpites, sempre que chamado , nas finanças. Torna-se um braço direito, um braço familiar direito.

Já nessa época eram considerados namorados. Não mais precisavam da presença inoportuna e sempre incomoda da irmã mais velha. Nesse tempo mais de dois anos já se passavam em uma convivência pacifica e promissora. A jovem, nem tanto inocente quanto antes, já depositava no então aprendiz de mecânico, seus sonhos para uma vida futura: Pensasse em casamento. Juntar dinheiro para começarem uma vida juntos.Tudo com a benção e aprovação já do amigo sogro. Tornou-se a família que João não teve. Tinha ate aprendido a lidar com os caprichos neuróticos da Francisca. Cada chilique seu tinha um motivo. Se gritasse muito estridente e porque tinha sido contrariada, sendo do contra em relação a tudo e todas e porque queria chamar a atenção. Já a doce e suave Cássia . essa tinha com o então segundo homem da casa uma relação fraternal. Se arrumava um namorado, tinha que ter a sua aprovação, qualquer problema no colégio ou fora dele João era o primeiro a saber e sempre o que resolva. Percebe-se então que da família fazia parte. Dava aqueles ares de pai, mas com um toque de compreensão e afeto. Visto que o chefe de família não guardava amor nem para si próprio. Preenchia aquele vazio criado entre a ignorância e o descontrole. Sempre presente dando aqueles ares de proteção, porem deixando sempre que seguissem com suas próprias pernas.

Casaram-se enfim, e encontramo-nos então nos dias de hoje. O mecânico dos quatro ônibus diários, empregado do áspero Silvino e companheiro fiel do Raimundo, Sebastião e Romero. Voltando a época atual, dentro da condução que o levava para trabalhar, e pensativo em como se livrar das dividas. De pé, segurando no ferro para não para não cair e, mesmo exprimido pela superlotação; completamente alheio em seus pensamentos. As obrigações financeiras naquela época estavam quase que se tornando insustentáveis. Talvez perdesse o armário que tinha comprado e o aluguel tinha subido de uma forma inesperada. O proprietário alegava que precisava tomar tal atitude porque se não quem se encontraria com problemas seria ele mesmo.

As dívidas, essas são certeiras os pássaros que sobrevoam milhares de quilômetros a cada mudança de estação . Já o dinheiro, principalmente nos dias de hoje, raro como o sorriso de uma alma desesperançosa. Pouco importando a dificuldade de conquistá-lo, era componente indispensável ao convívio familiar, ate talvez o mais importantes. Pouco importa aos credores se o devedor não tem como consegui-lo. O que o está cobrando nenhum pouco tem a ver também com suas dificuldades. E assim mesmo e a vida, um eterno empurrar de problemas. Comparada com aquela brincadeira de criança, sendo que uma empurra bola enorme para a outra e vice-versa. Ao termino da musica, quem acabou coma bola e eliminado. Temos na vida um ritmo que nada tem de infantil. Uma canção fúnebre seria o mais adequado. Os problemas passam de uma pessoa a outra e, a canção fúnebre encerrando, quem esta com o problema de uma pessoa a outra e a canção fúnebre encerrando, quem esta com o problema e castigado, quase sempre severamente, pela vida e, quando pior; pelo próprio homem.

- Vou jogar na loteria... – veio de súbito esse lampejo, quase um aviso diante de tanta suplica de melhora. Teve essa intuição e, como por encanto, alguns números vieram em sua mente complementar a percepção. Tudo começado na noite anterior, com em estranho sonho, que teve envolvendo varias pessoas do seu passado e presente. Entrava a família inteira de Jurema. O pai de sua esposa ilusão, na ilusão noturna, jogava um dado gigante, repetidas vezes e, quanto mais fazia isso, mais Francisca cantava alto e Cássia em círculos corria. Viu-se então criança a perguntar ao seu sogro se podia jogar o dado. Jogou cinco vezes (idade que tinha). Esse seria o primeiro numero jogado. O segundo veio da musica que sua cunhada cantarolava descompassadamente. Uma cantiga antiga que um velho da sua cidade natal tocava para as crianças em um mal acabado violão. Lembrou –se do ano que esse senhor morreu. O terceiro era o ano de criação dessa saudosa canção. Sabia porque teve curiosidade de descobrir devido ao gosto pela musica.

Um a um os números foram se encaixando, parecendo um quebra-cabeças montado por uma criança iluminada pela magia dos seus primeiros anos inocentes de vida. Explicar. Muitas coisas que existem, ou aceitamos ou vivamos de costas e sofremos conseqüências. O que e. Não faço a mínima idéia. Mas que muitas forças conspiram para que a carruagem do destino onde numa determinada trajetória; isso e inquestionável. E dessa forma aconteceu de um sonho revelador que teve. Num lampejo, numa espécie de estalo, chegou a essa conclusão: “ Vou jogar na loteria...”, assim o fez, e não participou a ninguém de sua decisão nem do que o motivou. São aqueles momentos que todos nos temos, em que somos invadidos por uma certeza tão absoluta que não temos como dela fugir. E ai de nos se tomarmos o caminho de desconfiar dela. A consciência martelara em nossas mentes e corações com tanta insistência que nos sentiremos os mais covardes, traidores de todos os tempos. Traímos a nos mesmo...

Jogou. Esperar o resultado. Procurou não pensar no assunto. Entregou-se novamente aos problemas e as tentativas de arrumar soluções. Belo dia de domingo. Dormindo o sono merecido do descanso da labuta semanal, que as vezes parece ser interminável. Num arrebatamento fora acordado e, tomado pelo pânico, somente escutava a comemoração da esposa: “ Meu bem, ganhamos o maior premio. Você acertou todos os números!” Sem nem se lembrar de nada e ainda sonolento, perguntou irrequieto:

- Ganhamos o que: Do que você esta falando.

- Na loteria! – e entre saltos e gestos descompassados.- Você jogou logo nos números que foram sorteados. Parece que você adivinhou...

Parecendo já sabedor do que estava acontecendo ate mesmo antes do acontecido, João permaneceu sem mostrar nenhum sentimento. Parecia ter recebido a noticia da morte de um enfermo em estado terminal. A mulher, atônita, diante da impassividade do marido, não conseguiu esconder o inefável sentimento que a dominava.

- Meu amor! Nos ganhamos o maior premio da loteria! Acorda” que bicho te mordeu.

Balançou o homem que, então se fez entendido e, num estalo, entre estranho e maluco, deu um salto e gritou:

- Estamos milionários!!!!

A noticia se espalhou que nem praga. Pobre não consegue guardar segredo. Amigos que eles nem conheciam foram com eles em sua casa. Faixas de fogos de artifício em homenagem aos agraciados pelo destino. A televisão. Reportagem. Todo mundo aparecendo e ficando famoso. Do nada na rua, no bairro, quase que a cidade inteira tornou-se uma família unida e extremamente participativa. Todos queriam dar opinião em como seria gasto o dinheiro, nas aplicações, obras assistenciais para os desamparados da vizinhança; ate em um carro alegórico se pensou para comemorar o tão inusitado evento.

Abraçando e saindo em todas as fotos, nunca tinha se sentido tão querido e importante o grande sujeito João. Quando não temos uma coisa, nem sequer sabemos que ela existe. Ate sabe-se, mas e uma idéia tão vaga e distantes que não se imagina que esteja tão perto de nos. Era uma pessoa muito boa, humana como muito ser humano não sabe ou não se lembra como e. Via em tudo aquilo, tão somente uma sincera amizade de seus vizinhos. Acreditava, no fundo da alma, que estavam felizes de coração pela sorte ter batido a sua porta.

Festa o dia inteiro e acordar na segunda-feira não foi nada fácil. Os louros da vitória sacudiam-lhe a cabeça como se fosse uma bateria no auge de um show de rock pesado. Muita cachaça colocada em uma conta aberta, especialmente, por seus novos amigo, feita em seu nome no bar do Zé, lá na esquina. A mulher acordou cedo, como de costume e fez um café de gente rica. Comprou tudo fiado, muita coisa mesmo, em sua nova conta. Ate fez umas compras para vizinha da frente, que pediu com tanto jeitinho, que foi impossível negar.

- Vem, meu rei... Assim fora acordado o mais novo herói da cidade, entre beijos e abraços. O café da manha e o jornal sobre a mesa, com a sua foto estampada em primeira pagina e, em colossais letras assim escrito: “O mecânico que ganhou o maior premio da historia...”

Chegando na oficina, ignorei por completo os três amigos que foram dar-lhe as felicitações pela grande conquista. Entrou coma petulância estampada no olhar e, ao deparar-se com seu chefe que, ao vê-lo, quis mudar um pouco de atitude e tentou ser simpático. Gente com dinheiro o tratamento e outro. Quem sabe ate uma forcinha para melhorar a oficina não podia dar.

- João, meus parabéns!!!

Fora interrompido nesse momento pó um saco no meio do nariz. Atordoado com o inesperado golpe, não teve a mínima chance de se defender. Segue-se uma serie de chutes e porradas, as mais diversas possíveis e imagináveis no desavisado homem.

- João, o que que e isso, cara... – entrou desesperado na sala. Raimundo, tirando o agressor de cima da vitima – Ficou maluco, meu irmão. O que ele te fez.

Virou-se para Silvino, que no chão encontrava-se todo ensangüentado,e falou com ar de superioridade:

- Eu não preciso mais de você, seu babaca. To com a alma lavada. Há muito tempo que eu queria fazer isso. Ignorou os ex-companheiros de trabalho e foi receber o premio. O homem e suas peculiaridades. Era um homem bom. Realmente um homem era. Mas para se conhecer alguém e simplesmente impossível ter essa oportunidade quando a pessoa esta por baixo. A humildade e o disfarce perfeito para se esconder o recalque e a revolta. Existe uma frase extremamente sabia e reveladora: “para conhecer o homem, de poder a ele.”

Penteou o cabelo cheio de gel com seu pente um sem numero de vezes. Recebeu o premio. Agora era rico e importante. Foi para casa e o outro dia transcorreu naturalmente. Tinha planos maravilhosos e grandiosos para sua vida junto a Jurema.

- Vou dar uma passada no bar do Zé para tomar uma cervejinha com a rapazeada.

Saiu de casa, feliz e despreocupado da vida. Dinheiro não era mais motivo para preocupação. Dono de seu nariz, ao passar por um beco, escutou alguém chamando o seu nome, ao virar-se...

- Em cara de homem não se bate safado... – era Silvino, enfiando uma peixeira no peito de João- E toda vez que o homem repetia essa frase; “em cara de homem não se bate.”, enfiava com mais ódio e certeza a morte dentro da arrogância que, arfando e cuspindo sangue, deu seu ultimo suspiro na navalha da vida.

Davy Rurik
Enviado por Davy Rurik em 03/04/2007
Código do texto: T436256
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