FORA-DA-LEI
Era noite de natal. A casa em festa, iluminada de alto abaixo, igualava-se às demais da vizinhança. Como nos anos anteriores, tios, avós, primos, amigos, chegaram para o evento. A árvore enfeitada dias antes, cozinheiras e garçons contratados.
Meus irmãos e eu com corações vibrantes. O que mais nos alegrava era a hora de abrir os pacotes que o Noel nos entregava. Quanta expectativa. Papai não deixava pedirmos. Adivinhava o que cada um queria, sempre nos surpreendendo. Era lindo. Essas coisas ficaram registradas de forma indelével no meu ser.
Papai havia passado uma semana em outro Estado, a trabalho. Chegou no dia da festa. Voltava cansado, os olhos vermelhos e tristeza espargindo pelos poros. Mesmo com a insistência de mamãe e dos parentes, o que se soube é que fora mal nos negócios.
O clima ficou desagradável. Tentamos disfarçar, cada um do seu jeito, mas havia algo no ar, e as risadas não eram capazes de esconder.
Mesmo assim, papai vestiu-se com esmero para a ceia, riu, brincou, contou piadas, fez macaquices.
Quando o Papai-Noel chegou, houve alarido, gritos e correrias. Cada qual queria ser o primeiro a receber o presente. E, como se combinado, Noel tirou o pacote do saco e anunciou:
— Adamastor Antonio de Freitas e Souza.
Alguém na porta repetiu o nome, como num grito, em forma de interrogação. Nossos olhares se voltaram para os três homens armados, e que foram, de imediato, segurando meu pai e algemando-o.
— O senhor está preso pela morte de sua esposa e das crianças.
Mamãe gritou:
— Ei! O que é isto? A esposa dele sou eu. Os senhores estão enganados. Soltem meu marido.
Os homens nem contestaram. Ante os olhares atônitos, o preso era conduzido para a viatura. Um tio, advogado, foi atrás, no carro dele.
Ficamos na porta, olhando o cortejo, entre choro, cochichos, palavras e interrogações.
Somente no dia seguinte, com as fotos e notícias nos jornais, é que nos inteiramos da verdade. Papai era bígamo. Minha irmã mais velha havia nascido apenas quinze dias antes de mim. Ele havia encontrado a esposa na cama com outro e matara a mulher e os três filhos.
Nunca mais vi papai. Mamãe incutiu em nós um ódio sem tamanho. Mudou de Estado, escondeu-nos. Na verdade, gostamos da atitude dela. Eu, especialmente.
O amor que tinha por meu pai transformou-se em vergonha, decepção e dor. Fui crescendo com a ideia de que papai havia morrido. E até me convenci disto.
O mundo foi girando e, na roda viva em que me meti, os anos passaram. Casei, tive filhos, fiquei viúva. Tornei-me uma profissional dura, inflexível, procedi de igual forma com marido e filhos. Amigos, não os tinha. Meu coração havia se fechado naquela noite. Deixei de amar. Tinha raiva das pessoas e do mundo. Até de mim.
Após a aposentadoria, resolvi recolher-me no sítio. Queria viver um pouco da paz que a natureza poderia me proporcionar. Durante um tempo, consegui ser feliz.
— Senhora Maria Eduarda de Freitas e Souza Guadalupe?
— Pois não.
— Sou Oficial de Justiça. Tenho uma notificação.
— De que se trata?
— O Juiz determinou que a senhora acolha seu pai. Assine aqui. Como a senhora não foi encontrada, o processo correu à revelia.
— O senhor está louco. Não tenho pai. Não assino nada.
— Desculpe. Vou deixar os papéis aqui. Mesmo não assinando, vou certificar de que tomou conhecimento. Hoje mesmo, seu pai virá. Há uma penalidade para o caso de não o receber.
O homem deu-me as costas, e eu fiquei apalermada, sem conseguir juntar os cacos para compor um raciocínio.
Sentei-me no banco sob a árvore e li. Era o maior absurdo registrado e acoberto pela lei. Meu pai doente, condenado a poucos anos de vida, socorrera-se da justiça para obrigar-me a cuidar dele.
Havia coisa mais ridícula e sem nexo para impor a uma filha que passara pelo que passei? O desespero não me deixava organizar as ideias. Senti-me uma demente de uma hora para outra. Nem sei quanto tempo fiquei imobilizada, com os documentos queimando-me as mãos e fazendo-me ferver o sangue. Mas, como dizem que desgraça pouca é bobagem, a ambulância chegou.
Além dos enfermeiros, dois policiais acompanhavam o doente, conduzido numa maca. E fui vendo os homens entrarem em meu lar - sem essa de pedir licença - e procurarem um quarto e colocarem o homem no que acharam melhor: o meu. Tudo sem me consultarem, sem dizerem palavra, sem justificarem. Era a Lei.
— O Juiz determinou que um enfermeiro fique aqui. Por dois motivos: o primeiro para cuidar de seu pai e o segundo para fiscalizar o cumprimento da sentença.
Voltei para o mesmo banco e sentei-me. Meu corpo tremia, sem controle. A noite chegou. Fui pé-ante-pé até o quarto e constatei que o enfermeiro dormia.
Fugi. Abandonei tudo. Hoje, sou uma fora-da-lei.
— Adamastor Antonio de Freitas e Souza.
Alguém na porta repetiu o nome, como num grito, em forma de interrogação. Nossos olhares se voltaram para os três homens armados, e que foram, de imediato, segurando meu pai e algemando-o.
— O senhor está preso pela morte de sua esposa e das crianças.
Mamãe gritou:
— Ei! O que é isto? A esposa dele sou eu. Os senhores estão enganados. Soltem meu marido.
Os homens nem contestaram. Ante os olhares atônitos, o preso era conduzido para a viatura. Um tio, advogado, foi atrás, no carro dele.
Ficamos na porta, olhando o cortejo, entre choro, cochichos, palavras e interrogações.
Somente no dia seguinte, com as fotos e notícias nos jornais, é que nos inteiramos da verdade. Papai era bígamo. Minha irmã mais velha havia nascido apenas quinze dias antes de mim. Ele havia encontrado a esposa na cama com outro e matara a mulher e os três filhos.
Nunca mais vi papai. Mamãe incutiu em nós um ódio sem tamanho. Mudou de Estado, escondeu-nos. Na verdade, gostamos da atitude dela. Eu, especialmente.
O amor que tinha por meu pai transformou-se em vergonha, decepção e dor. Fui crescendo com a ideia de que papai havia morrido. E até me convenci disto.
O mundo foi girando e, na roda viva em que me meti, os anos passaram. Casei, tive filhos, fiquei viúva. Tornei-me uma profissional dura, inflexível, procedi de igual forma com marido e filhos. Amigos, não os tinha. Meu coração havia se fechado naquela noite. Deixei de amar. Tinha raiva das pessoas e do mundo. Até de mim.
Após a aposentadoria, resolvi recolher-me no sítio. Queria viver um pouco da paz que a natureza poderia me proporcionar. Durante um tempo, consegui ser feliz.
— Senhora Maria Eduarda de Freitas e Souza Guadalupe?
— Pois não.
— Sou Oficial de Justiça. Tenho uma notificação.
— De que se trata?
— O Juiz determinou que a senhora acolha seu pai. Assine aqui. Como a senhora não foi encontrada, o processo correu à revelia.
— O senhor está louco. Não tenho pai. Não assino nada.
— Desculpe. Vou deixar os papéis aqui. Mesmo não assinando, vou certificar de que tomou conhecimento. Hoje mesmo, seu pai virá. Há uma penalidade para o caso de não o receber.
O homem deu-me as costas, e eu fiquei apalermada, sem conseguir juntar os cacos para compor um raciocínio.
Sentei-me no banco sob a árvore e li. Era o maior absurdo registrado e acoberto pela lei. Meu pai doente, condenado a poucos anos de vida, socorrera-se da justiça para obrigar-me a cuidar dele.
Havia coisa mais ridícula e sem nexo para impor a uma filha que passara pelo que passei? O desespero não me deixava organizar as ideias. Senti-me uma demente de uma hora para outra. Nem sei quanto tempo fiquei imobilizada, com os documentos queimando-me as mãos e fazendo-me ferver o sangue. Mas, como dizem que desgraça pouca é bobagem, a ambulância chegou.
Além dos enfermeiros, dois policiais acompanhavam o doente, conduzido numa maca. E fui vendo os homens entrarem em meu lar - sem essa de pedir licença - e procurarem um quarto e colocarem o homem no que acharam melhor: o meu. Tudo sem me consultarem, sem dizerem palavra, sem justificarem. Era a Lei.
— O Juiz determinou que um enfermeiro fique aqui. Por dois motivos: o primeiro para cuidar de seu pai e o segundo para fiscalizar o cumprimento da sentença.
Voltei para o mesmo banco e sentei-me. Meu corpo tremia, sem controle. A noite chegou. Fui pé-ante-pé até o quarto e constatei que o enfermeiro dormia.
Fugi. Abandonei tudo. Hoje, sou uma fora-da-lei.