Eu? Quem?

Nasceu diferente.

Demais.

Via o mundo com muito sentimentalismo.

Desde criança já gostava mais das músicas tristes. Sua preferida era “Tears in Heaven” do Eric Clapton. Quando descobriu que o cantor havia feito a música para o seu filho que havia caído do apartamento, ficou mais fã ainda da música.

...

Tornou-se adolescente.

E para a sua agonia e desespero: continuava o mesmo.

Não entendia como e o porquê das coisas funcionarem de um modo tão injusto para a maioria das pessoas.

E sufocava-se em sua tristeza diária.

Antagonicamente aos garotos que saiam aos sábados para os torneios de futebol do bairro ele preferia ficar em casa tentando entender o mundo.

...

Tornou-se adulto.

A melancolia de todos os dias o enlouquecia.

Como sobreviver a tanta maldade e crueldade sem senti-las?

Estava cansado de sentir as dores do mundo.

Cansado.

A melancolia o tornava um pouco anti-social. E isso aumentava a sua angústia de ser ele mesmo.

A solidão já cortejava a insanidade todas as noites.

E numa epifania dessas noites solitárias em seu quarto escuro, resolveu teatralizar o seu “eu”.

Decidiu criar um personagem para cada grupo que convivia, assim, não seria mais solitário.

Nunca mais.

E desde então, os seus personagens tem sido muito bem sucedidos. Representando muito bem cada um deles conforme lhe era demandado em cada circunstância, ele parecia satisfeito e feliz por ser tão admirado e amado.

Conseguiu o que sempre desejou: ser amado.

E ganhou destaque na faculdade, agora era líder da turma do curso de Psicologia que fazia. No mês seguinte, foi promovido a gerente executivo de vendas do banco em que trabalhava e no seu aniversário, muitas pessoas e muitos presentes o rodeavam. Muitos sorrisos a postos em seu apartamento em Jardim da Penha.

E não o enxergou.

Não sentiu felicidade alguma.

Pelo contrário: um vazio tão devastador que saiu do apartamento sem avisar e foi até a Praia de Camburi tentar entender o porquê daquele desespero súbito.

Quem estava ganhando aqueles presentes?

Não sou eu?

São as mentiras que eu criei?

Oh Deus, como sou miserável..

...

Agora, deitado num divã, tenta a todo custo nesses diálogos terapêuticos intermináveis encontrar o seu “eu” sozinho no palco, sem maquiagem, sem figurino ou falas decoradas. Agora ele se enfrenta e nessa luta constante, tenta não morrer em seu sentimentalismo nem ser igual aos outros.

Tenta e em vão, se curar de uma dor que só dói porque se vive.