SER
Era um homem estranho. Há muitos anos que vivia no bairro mas pouco se sabia a seu respeito. Costumava sair, elegante, para trabalhar. Usava fato, gravata de seda, sapatos sempre engraxados. Um dia alguém disse que se aposentara e não voltou a ser visto como dantes. Agora saía vestido como um adolescente descuidado arrastando a magreza pela rua em direção ao Parque. Ficara viúvo muito cedo mas parecia que não lhe pesavam a solidão e o isolamento. Respondia aos cumprimentos e, eventualmente, trocava ideias com quem o abordasse. Era simpático e misterioso. Gradualmente desfizera-se de tudo, contou-me. Primeiro livros velhos e papéis, depois mobília excessiva e louças, a seguir a roupa que enchia os roupeiros e gavetões e, depois de tudo vendido, oferecido ou abandonado, vendera também o carro. Sentia-se muito bem depois disso, muito mais leve e livre. Gostava da casa com espaço, decoração minimal, luz a entrar pelas janelas sem cortinas. Era uma opção viver sozinho porque, confessou, estava tão sensível e seletivo que ninguém conseguia ultrapassar as barreiras com que se defendia de intimidades e devassas. Alienava bens mas ganhava o mundo em coisas tão grandes como o firmamento, o mar, a encosta da serra ou em dimensões tão reduzidas e íntimas que só espíritos especiais o compreenderiam. Deus, disse, estava em tudo, criara tudo e assinara, de modo admirável, todas as Suas obras, da maior à mínima. Viver passou a ser sentir o tempo, respeitar a natureza, crescer no afeto de quem com ele partilhava o dia. Animais ou plantas, pedras, terra, água... Não precisa de mais nada nem de ninguém? – Perguntei. – Sim, preciso, respondeu. Espero sempre por alguém que venha, me olhe com afeto e que fique. Que me entenda sem perguntar nada e que ache ser melhor amar que destruir. Quero que quem vier sinta que esta pedra e aquela lagartixa também possuem, de pleno direito, o mundo que me foi dado para viver.