UM MORTO DURO NA QUEDA

Tio Eulálio estava muito doente. Com seus 1.91 M de altura, gozador nato, espirituoso, meio folgado, ele sempre fora uma referência na família. Agora no hospital pagava o preço de anos e anos de grandes bebedeiras, alimentação nada ortodoxa, rica em gorduras e da idade um pouco avançada . Adorava carne de porco, velho hábito adquirido ainda na infância e adolescência, passada nos cafezais das fazendas que seu pai administrara no interior de São Paulo nos idos de 50. Eulálio, com seu tamanhão, meio desengonçado, veio a São Paulo, tentar a sorte no final dos anos 60. Tentou de tudo, desde jogar bola com os pés e com as mãos, já que na década de 70, não era tão comum, ver pessoas com sua altura em São Paulo. Gabava-se de ser o maior centroavante do mundo referindo-se , à sua altura e não a sua técnica , por certo. Jogou na várzea em São Paulo, mas ele nunca teve os demais requisitos necessários e acabou mesmo como um bom funileiro, profissão com que se identificou, restaurando carros batidos, repintando carros não tão novos e dando aquela “Garibada” nos carros velhos, expressão que era uma de suas favoritas. Brincalhão, caipirão, corintiano fanático, fazia boas amizades e logo ficou conhecido pelo apelido familiar, Lalão, embora os “amigos” colocaram nele vários apelidos jocosos. Os que menos ele gostava era , Eucalipto. Embora tinha outros bem mais jocosos como “Espanador da lua”," Pé de côco”, “Bambu” etc...

Lalão era famoso também por suas tiradas. Lembro-me algumas. Dos políticos diziam que não adiantava criticar, pois no fim, todos viravam honestos. Referindo-se a vida, destes, depois da morte. Sobre a vida, dizia que o mal é que o carrinho do tempo não tinha freios, nem marcha a ré e muitas outras, que não me lembro agora.

Agora, já beirando os 70, o velho Lalão, já tinha se aposentado da lida de funileiro e brigava contra um câncer. Tinha cirrose no fígado há alguns anos, que parece, evoluiu para um câncer mortal e indomável que se espalhava por vários órgãos.

No segundo dia de Abril do ano passado, contudo, ele perdeu a sua mais importante batalha. Já com falências em vários órgãos, tio Eulálio, fechou os olhos para este mundo, antes mesmo do sol lamber o orvalho das folhas.

Foi um corre-corre, para a família para achar um caixão que coubesse o corpo, ligar para a companhia funerária, aquela briga para pechinchar por um preço mais barato, para o caixão, caríssimo segundo D. Eugênia, sua esposa, o translado, o enterro e o necrotério.

- Olha disse-me ela. Não dá para morrer mais, não. Tá tudo pela hora da morte neste país. Reclamando da carestia das coisas. Tio Eulálio, felizmente, tinha uma cova garantida no cemitério da Quarta Parada no Tatuapé, comprada há muito tempo atrás, quando ali enterrou seu próprio pai e sua mãe.

O velório deu-se no próprio cemitério da Quarta Parada, onde descansam grande parte dos antigos moradores da zona leste de São Paulo. Ali Eulálio, pelo menos seu corpo e família, recepcionaram velhos companheiros de truco, caixeta e de cachaça dos tempos de funilaria. Todos com a cabeça branquinha e alguns sem muito futuro pela frente.

Disse-me um deles. A vida é daqui até aqui. Mostrando os indicadores de cada mão, levantados. O problema, arrematou ele, filosófico, é que nunca se sabe onde você está. Eulálio, disse ele, bateu já no indicador da direita. Não ajudava a mitigar a dor, mas auxiliava a quem ouvia, a aceitar melhor os vaticínios da morte.

O caixão chegou. Imenso. Acharam um, que devia já ter sido usado para enterrar, antigos jogadores de basquete. Ouvi dizer que as pessoas que são cremadas em São Paulo, são cremados sem o caixão, pago pela família e que o caixão, reformado, retorna à baila e é revendido para as funerárias. Seria verdade? Tio Eulálio, costumava dizer, quando acusado de roubar no jogo de truco, que até na morte, havia tramoia. Não é que ele parecia ter mesmo razão?

O enterro saiu as 5.30hs da tarde. O cortejo saiu a pé mesmo, no cemitério que é do lado, passando pelos centenas de túmulos, alguns, verdadeiras obras arquitetônicas, portentosas, ostentando mármore Carrara Italiano, um luxo absurdo, para os cadáveres. Se tio Eulálio visse aquilo bem que diria que era, um exagero de rico besta. Melhor seria construir casa para os pobres, diria. Mas os vivos precisam de consolo para sua dor e despejam dinheiro para mostrar ao mundo seu amor ao morto e a importância e o poder financeiro da família. A vaidade nunca perde uma chance de se mostrar, nem no cemitério. Os mortos mesmo, como sabemos, não estão nem aí.

Chegamos a tumba, a última morada de Lalão. Uma cova recém-escavada com um monturo de terra vermelho- escuro do lado. As últimas orações foram feitas, seguido de um silêncio sinistro. Então os dois coveiros, práticos e acostumados com a tarefa, foram logo pegando o caixão com ajuda de alguns parentes e aprumaram-no para a cova. Com corda embaixo do caixão, levaram-no sobre a cova. Primeiro problema. A cova era pequena demais para o tamanho do caixão. P.Q.P..! .resmungou um dos coveiros, mais preocupado em se livrar da tarefa. Parecia antever os problemas. Ele saltou para dentro da cova e começou a cavar na cabeceira da mesma, de cima para baixo de modo a alargá-la.

Vup, vup, vup, com um pequeno enchadão e muita força, ele cavava rápido. Ainda dentro da cova pediu que recolocassem o caixão no alto sobre ele para que pudesse ver se o cumprimento da cova já era suficiente. Com dificuldade, seis homens, segurando as pontas do caixão tentavam sustentá-lo acima da cova e do coveiro, para que este pudesse avaliar o encaixe do mesmo à cova. Tio Eulálio, mesmo tendo perdido peso, por força da doença que o consumira, ainda era um desafio e tanto com seus cento e tantos quilos. Foi aí, que as mãos que seguravam uma das pontas do caixão, cederam e o caixão despencou de bico na cova, sobre o coveiro que ficou prensado sob o caixão. O pior é que os outros que sustentavam a outra ponta também a soltaram também fazendo com que o caixão descesse e ficasse entalado, com uma ponta no chão e outra a um metro de altura do fundo, formando um ângulo de 45 graus com relação a outra ponta. Embaixo do caixão, o pobre do coveiro gritava por socorro.

Alguém foi buscar algumas cordas imediatamente. O outro coveiro pulou para dentro da cova em cima do caixão e por uma pequena fresta entre o caixão e a parede da cova, ele desceu a ponta da corda e pedia que seu amigo que estava preso embaixo, tentasse passa-la em volta do caixão para que pudessem içá-lo para cima. Não deu! O coveiro, exprimido pelo caixão não conseguia se mover. Foi então, que o outro teve a ideia cavar um buraco com uma escavadeira no lado, onde a ponta do caixão era mais alta e quando atingiu a altura necessária, conseguiu envolver o caixão com a corda e assim, juntos com outros homens, conseguiram içar a ponta do caixão, pondo-o de pé dentro da cova, permitindo que o coveiro preso dentro da cova saísse. Ele saiu todo sujo de sangue, sua cabeça abrira com a pancada do caixão. Sujo de terra e sangue, tirou a camisa e a usava para estancar o sangue. Pior era Tio Eulálio, de ponta cabeça dentro do caixão.

Se estivesse vivo, imagino os palavrões que falaria para aqueles pobres e atrapalhados coveiros e de seus amigos.

Estancado o sangue e limpo com água, os coveiros estavam prontos para concluir o enterro mais difícil de suas vidas. A esta hora, ocorreu-me o velho mantra que tio Lalão criara e dizia pra enfrentar as adversidades da vida, sempre que estas se apresentavam.

– EEEEETTTCCCHHA!!

Alguém então teve a ideia brilhante de tirar o corpo do caixão e fazer o teste na cova, sem o morto o que ficaria bem mais fácil. Todos concordaram menos a viúva. Tia Eugênia estava puta da vida com os problemas de última hora e gritava palavrões contra todos. Foi acalmada pelas filhas, noras e irmãs.

Os coveiros não ligaram para ela, um deles pulou para dentro da cova e o outro ficou do lado de fora. Juntos com todos os homens tentavam puxar o caixão para fora. O esforço foi grande. Suados e sujos de terra, finalmente botaram o caixão fora da cova e o colocaram deitado na calçada. Abriram a tampa e sacaram tio Eulálio lá de dentro. Ele tinha a cabeça esfolada, sem pele e um hematoma enorme na testa, fruto da queda do caixão na cova.

Puseram-no deitado na grama. Ficou ali, deitado, como uma pedra ao relento. Sua expressão era calma. Parecia folgazão. Sua feição branda, remeteu-me a uma de suas tiradas de sentido duplo : - Vamos lá cambada, será que não conseguem nem enterrar um sujeito direito!! Olha que já vai escurecer e eu preciso descansar!

Um amigo de Lalão, o Gaucho, falou mais alto:

-Lalão quer ficar no mundo, não quer ser enterrado, não! Este Lalão é um cara bagual mesmo!

Realmente escureceu rápido. Foram buscar as velas do velório para alumiar a cova e o serviço. As mulheres segurando as velas, os homens colocaram facilmente o caixão vazio no alto, sobre a abertura da cova. Lentamente, presos por cordas nas pontas o caixão foi descendo. Foi aí que viram que a uns 60 centímetros antes do fundo, haveria ainda a necessidade de abrir mais o buraco. Lá foi o coveiro cavar mais uma vez, alumiado pela vela. Eu olhando para o tio Eulálio e pensando com meus botões : Só tio Eulálio mesmo para ser enterrado à luz de vela. Chique! Ele bem que merecia, por todas as risadas que nos fez dar, nesta vida.

Finalmente a cova ficou pronta e alargada, o teste com o caixão foi positivo. Ele descera ao fundo e subira com folgas, sem problemas. De volta para cima, quatro homens recolocaram o corpo do tio, de volta no caixão e com amparo das cordas no meio e nas duas pontas do caixão seguro por uma dúzia de homens, o caixão levando Tio Lalão desceu lentamente ao fundo. Foi a ultima vez, que ele deixara a superfície deste mundo, para sumir nas profundezas da terra e do desconhecido. Havia alívio, havia ainda lágrimas e havia um nó peito de todos os seus parentes e amigos.

Na volta ao sair do cemitério, com a maioria das velas apagadas, nos deparamos com um último problema. A nossa frente, milhões de baratas nas ruas do cemitério. Quando clareadas pelas luzes fracas das velas, elas pareciam um exército de soldados romanos, emparelhados, com seus capacetes marrons e suas antenas parecendo lanças. Não tinha como não pisa-las.

A mulherada abriu uma gritaria geral e correram desesperadas. Tia Nicota, com seus 78 anos e seus 90 quilos, medrosa como uma pomba, correu e tropeçou na mureta da beira da calçada e desabou sobre as baratas.

Eu ri muito. Imaginei as baratas, olhando para cima e gritando : MADEEIRA !!!! E o corpo enorme da tia, espatifando no chão, pllaffftt ! Deve ter matado umas 500 de uma só vez. A gritaria era geral. As pessoas não sabiam se socorriam Tia Nicota ou se das tiravam as baratas presas nas roupas.

Desesperadas por aquele ataque nuclear da Tia Nicota e com o pisoteio das pessoas, as baratas subiam nos túmulos e corriam como que fugindo do apocalipse. Finalmente atingimos a porta de saída do cemitério e todos puderam respirar aliviados. Esqueceram a tristeza!

- De repente Tia Nicota, ainda não refeita totalmente, soltou um berro assustador, quando descobriu uma barata andando nas suas costas sob o v cabelo. Foi literalmente espancada por muitos que lhe davam porradas nas costas, que fez com que o pulmão dela quase saisse pela boca.

- Calma, gritava ela, entre uma tossida e outra.....é para matar a barata, não eu!!!

Terminou assim, o incrível enterro do Tio, com muitas risadas, como só podia acontecer com ele e a sua família de malucos, a qual pertencemos ....Todos partiram para suas casas e a vida seguiu seu curso ignoto!

Celio Govedice
Enviado por Celio Govedice em 23/06/2013
Reeditado em 29/05/2016
Código do texto: T4354937
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