"Never seek to tell thy love,
                       Love  that never told can be;  
         For the gentle and doth
                      Move silently, invisibly."
                                                                       - William Blake (1757-1827)


                               
                         
                     Vestígios Do Amor - II


O sol raiou timidamente naquela primeira manhã do inverno. Procurou invadir aquela morada que continuava silenciosa e com todas suas janelas fechadas impedindo a sua entrada.  Ainda são 7 horas  e o frio continua intenso.

Naquela morada, um casal está entregue ao poderoso deus Hipnos enquanto seu filho Morfeu acalanta seus sonhos sem fim. O tempo parece estar enfeitiçado, parado em outra dimensão.

Espiando pelo canto da vidraça o sol vê vestígios de rituais. Num dos criados mudos repousa uma xícara ainda com um restinho de café preto, um livro de suspense do mestre King além de uma pilha de gibis dos Super Heróis da Liga da Justiça. O outro criado mudo está repleto de CDs, um abajur e livros, quase todos biográficos: Rosa Parks, Abraham Lincoln, Julia Child e Amy Winehouse. Hoje em dia, a leitura é focada em pessoas reais e não fictícias. Personagens dos mais variados que revolucionaram e despertaram o mundo para ser mais justo, muito mais saboroso e dançante. Pessoas com vozes que ecoam pelo mundo mesmo que sejam 'blue'. O King também marca sua presença num best-seller versão inglesa, assim ambos compartilham da mesma leitura. Um assuntar só deles surgirá ao decorrer do dia não deixando o tédio invadir a sua intimidade. Há também um leve aroma de chá Earl Grey que exala de uma xícara cuja borda está levemente borrada de batom da cor de rouge carmim. A cor da sedução e do pecado ... seria também a cor do amor? Duvida cruel pensa o sol mas, ele sabe, e como sabe ... houve beijos da cor de rouge carmim que ficaram tatuados nos lábios e provavelmente dez dedos fincaram a pele daquele homem que agora envolve aquela musa em seu abraço. 

E o sol? Ainda insiste em entrar! Como não invadir aquela morada depois que o velho vento do sul soprou aos quatro cantos que descobriu onde morava o amor! Agora o sol desejava mais do que nunca conferir se era verdade ou se era apenas mais uma das mentiras daquele vento invejoso e enxerido que se metia onde não era chamado.

As janelas permanecem fechadas, assim o sol resolve penetrar pelas vidraças de vez para espiar o ambiente e o repouso daqueles corpos encolhidos na cama. O sol se espalha em inúmeros raios sobre aquela manta da cor verde musgo que mais parece relva mas logo se surpreende com aquele calor que emana dos corpos aquecendo aquele ambiente todo. O homem abraçado à sua fêmea e ela encaixadinha nele enquanto seus braços seguram os dele. Um leve roncar embala o sono profundo do casal enquanto Morfeu manipula suas mentes e mais loucos desejos.

Os raios se espalham e são testemunhas dos vestígios do amor naquela morada acolhedora. As estantes  exibem porta retratos que contam estórias de pais, irmãos, filhos e netos. Alguns já partiram, outros ainda fazem suas visitas dominicais e comparecem nas datas importantes. Estantes carregadas de inúmeros livros dele que foram carinhosamente adotados e se juntaram aos dela. Livros, uma das paixões de ambos, não tem como negar. Livros por toda a casa. Livros de todos os tamanhos, pequenos e grandes. Muitos são velhos, outros nem tanto. Obras Shakespearianas encostam nos livros do Berlitz que estão entre os do King, Lya Luft, Peter Straub, Fernando Pessoa, Aleister Crowley, George Orwell, Frank McCourt, Zélia Gattai, Edgar Allan Poe, Robert Browning, Freud, Danuza Leão, William Blake, Érico Veríssimo ... Uma mistura divina sem preconceitos  ... só deles. Ao beijar as capas dos tesouros, o sol sem querer descobre um pedacinho de papel da cor de carmim. Este pedacinho de papel veio numa noite de outono junto com o vento. Curiosamente o sol vasculha mas um pouquinho para descobrir se é um segredo ou ... uma lembrança.  Será um sonho interrompido? Somente o dono é quem sabe ... Talvez o melhor é ignorar ... ou esquecer. Melhor prosseguir, por que o tempo corre e o astro rei tem horário a cumprir e um mundo a aquecer. 

O sol vai explorando os cantos daquela morada e ao aproximar da cozinha se sente intimidado com o aquele amarelo vivaz que lhe dá calorosas boas vindas. O invasor logo se aconchega e percebe que o seu amarelo não se curva ao anfitrião mas,  se unem, a cor amarela fica muito mais intensa e caliente. Um imenso prazer conjugal! Uma experiência única que faz o sol entrar em êxtase. Sua roupagem nova: amarelo royal! Sua nova cor miscigenizada toma conta daquele ambiente todo e aquece a alma daquela morada. 

A mesa caprichosamente coberta por uma toalha da cor salmão onde um lindo vaso de porcelana chinesa repousa majestosamente. Nele, um enorme buque de hortênsias se destaca e suavemente perfuma o ambiente dando ao 'set' um 'look' majestoso da cor lavanda. Cenário perfeito para qualquer uma das refeições do dia ou um lanche da tarde regado a pão francês quentinho com catupiry ou paté de foie gras digno de um banquete real.

Ao se retirar daquele ambiente em 'slow motion', o sol vai se despindo do seu magnífico amarelo. O seu calor já não lhe parece tão intenso. Estranho. O astro rei sente levemente um friozinho! Como pode? Poucos segundos e já está saudoso daquele contato fabuloso que o fez radiar mais do que nunca por um momento. 

É, o vento não exagerou, nem mentiu. Apenas omitiu ao não confessar que se apaixonou por aquele recanto, aquela morada onde o amor reina absoluto. O sol se despede mas, antes de partir fez juras de amor àquela casa. Juras que jamais fez, nem mesmo no dia da sua criação nem mesmo quando ele e a lua se esbarraram no céu num dos muitos crepúsculos abreviados. Ah! Se a dona lua declarar que existe um 'affair' entre eles! O senhor sol prontamente negará pois nunca fora tão seduzido como naquela primeira manhã do inverno ao visitar a morada do amor!
Calada Eu
Enviado por Calada Eu em 22/06/2013
Reeditado em 22/06/2013
Código do texto: T4353535
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