A herança


                    Antônio já sabia da sua demissão, havia três redatores e a empresa só poderia ficar com dois,neste caso um rodaria, a lei da sobrevivência diz: os fracos sempre se juntam, não percebeu isso antes porque aqueles dois foram amigos próximos demais a quem Antônio fazia confidencias.

                     Sabia que nem era pela demissão a mágoa, a chateação e a dor de cabeça, uma hora aquilo aconteceria, teria que deixar aquela empresa, nada dura para sempre. A verdadeira magoa era pelos amigos que perdia, pois por alguma razão o coração não sabe perdoar os amigos, tudo por falta de conversa, sinceridade.

                    A traição é uma coisa correiqueira nos dias de hoje, porém aqueles dois ali em pé, tentando explicar o inexplicável. Max e Rafael foram durante muito tempo seu maior apoio, durante a morte da esposa estiveram do seu lado, Antônio achava aquilo real, até aquele dia.
                   Todos dois deviam a sua carreia a Antônio,um ele trouce para a empresa(Rafael) o outro era o seu irmão de fé(Max) nunca escreveu nada, todas as criações que ele assinava era de autoria de Antônio e ainda ajudou com dinheiro quando a mulher de Max teve que fazer uma cesárea de emergência, por sua vez Max ficou o tempo todo do seu lado na morte de Eduarda e agora partia o coração de Antônio, mostrando que até mesmo a amizade tem limites quando a sobrevivência está em jogo.
                    Agora todos estavam ali sentados na sala de reunião, tinham uma única coisa em mente, acabar com o seu emprego a única forma de sustentar a sua filha. Salvariam a suas peles, seus carros, seus apartamentos(bela-alma de Lacan)
                   Estava com uma carta que a sua ex secretaria(até hoje não sabe porque tinha secretária, algum executivo, desses sobrinhos do dono, dando emprego para alguma gostosa, com segundas intensões) entregou quando chegou,”pra você querido”, ela tinha maquiagem demais, vestido curto demais. Antonio desviou o olhar da mulher e olhou a carta, brincava com a carta mão, amassou , colocou no bolso, carta do tio Mauro(quem diria, tão afastado, recluso, eremita, há anos não via), antiquado uma das poucas pessoas a usar cartas.
                   Pensou mais uma vez na morte trágica da mulher com câncer, aquele sofrimento e agora a demissão, por qual provação precisaria passar?Ou será que era um libertação?
                  Sentou em um canto, Rafael estava sério, nem parecia o garoto com os cabelos revoltos, praticante de canoagem, olhos vesgos, executivo playboy , camisa fina e paletó na mão, Max estava de terno, todo fechado(bem vestidos para executar, Antônio dois carrascos).

                  Max era bom vendedor e cresceu na empresa, além de tudo era muito político, competitivo,no entanto era por ele o maior sentimento de decepção, o amigo mais antigo, de alguma forma na troca de olhares Max sabia que estava agindo errado.
                  -Desculpa cara, tinha que ser um de nós, eu estou velho, onde o Rafael vai trabalhar?Ele não tem seu talento. Olha não se preocupa – disse tocando o ombro de Antônio - você escreve muito bem, nós não, só sabemos fazer penas isso aqui, além do mais, vamos achar uma solução para essa merda toda, a decisão vem de cima, estaremos com você eu mesmo vou falar com alguns amigos, logo você estará empregado – disse Max, houve um silencio, como Antônio não implorou ele disse – quer um café?
                   -Cala essa boca. Não fala nem uma palavra .Ninguém da executiva vai descer para me demitir, elegeram vocês dois, os amigos “fiéis” para dá a noticia, então não enrola,se vai me demitir, demita de uma vez, ou vai ficar fingindo que é meu amigo?A firma não precisam mais de um redator do meu quilate, sou muito bom – falou Antônio com ironia – merda nenhuma. O negocio é feito pela internet agora, vocês foram remanejados, você(apontou para Max)para vendas e você para o marketing(Rafael), muito mais barato, assim reaproveitam dois e demitem o mais velho e mais caro, demitem que ajudou a fundar essa merda toda e nunca ganhou nada, além do salario– disse Antônio e eles concordaram com a cabeça(do tipo:”falou tudo”)– estou na rua?
                     -Larga isso, você escreve livros, têm talento – disse Rafael.
Antônio chegou bem perto de Rafael , sua respiração era lenta.
                      -Vai se foder – Antônio apontou o dedo no rosto do rapaz – uma coisa você está certo, você nem tem talento, nem caráter – Antônio virou a face para Max, no entanto o amigo não conseguia encarar, quis falar alguma coisa, mas não havia palavras.
                    Saiu, nem chegou a ouvir a resposta do dois. Não tinha escolha, precisava fazer alguma outra coisa para conseguir o sustento da filha.
                     Antônio foi a escola e pegou Mônica, a pequena, com dez anos, estava perdendo um dos dentes, a conta bancaria tinha uma reserva, quarenta mil reais, agora estava sem emprego e precisava economizar, sentaram no banco do parque para dividir um sanduíche e conversar alegremente, coisa que a filha preferia a passeios no shopping, adorava espaços abertos.
                     -Que tem ai no bolso pai? - esperta ela viu a carta dobrada no bolso.
                   Antônio havia esquecido a carta de tio Mauro, que Mônica nunca conheceu, tio avô.
                   -Carta do tio.– disse Antônio, ele não escondia nada de Mônica, tio Mauro era Gay, tio Flores o namorado vinte e cinco anos mais novo, Antônio desamassou a carta e viu o remetente, “olha só quem escreveu: Cláudio Flores, deve ser algo importante, nunca usou o primeiro nome” falou Antônio.
                   -Deixa ver – puxou a carta da mão do pai e correu para ler.
                  -Ei é correspondência alheia – disse Antônio.
Mônica começou a ler, depois, com rosto triste, soltou a carta.
                  -Ele morreu. – disse.
                   Aquela tarde foi um pouco mais triste que o comum, Mônica chorou sozinha no quarto, mesmo não tendo conhecido meu tio, a menina sentia, sentia cada perda depois da morte da mãe.

                   Antônio dormiu abraçado com o retrato da mulher, como ele precisava dela, do romance, do perfume, seus cabelos negros, o amor que sentia nunca terminaria, a dor também não, sua pele macia tocando a de antônio era uma lembrança tão viva que parecia fogo queimando na pele, amanheceu suado e com dor de cabeça. Com o seguinte pensamento:

                    “Eduarda foi perfeita por isso partiu desse planeta, para um mundo melhor além morte, pessoas que nascem com o cheiro da morte, boas demais para permanecer vivas em um mundo horrível.”
Leu novamente a carta, uma herança! Pelo que Antônio sabia tio Mauro era pobre,o amigo Flores não dava detalhes, uma pequena casa e pertences pessoais.
                 -O que faço com pertences pessoais? – pensou em voz alta.
Viajar para o interior, fez bem a sua cabeça.
                 Duas da tarde chegaram à casa de Flores, ele usava um balão de oxigênio, ainda gordo,flácido, muito envelhecido, cabelos brancos, porém mantinha a expressão que lembrava o garoto alegre que se apaixonou pelo tio de Antônio.

                Tossiu várias vezes após retirar o oxigênio para falar.
-Maldito cigarro – disse Flores– Senta um pouco Antonio, já vou te levar lá , vou lhe trazer um chá, o melhor daqui, ainda consigo fazer, aprendi em                                     Londres, Mauro adorava– Flores era mais novo, tinha olhos azuis, culto, estudou biologia, foi professor, erudito, segundo a mãe de Antônio e irmã de Mauro, foi amor a primeira vista, naquele momento de dor da perda do companheiro parecia ter perdido o brilho sorriso, continuou falando, porém sua voz era triste – Não consegui ficar lá – falou enquanto servia o chá.
Mônica corria em espaço livre e parecia feliz na casa de Flores, Antônio gostava dessa liberdade.

                  A viagem foi curta, a casa atual de Flores ficava perto, desceram do carro, Flores desceu por ultimo, parecia cansado, tinha uma enorme dificuldade para fazer tarefas muito simples por causa do corpo gordo, roliço em ondas de gordura, era um homem lento dava um sensação de que logo ele se juntaria ao namorado, algum ataque cardíaco destravado pela solidão.
                   -Não é muito o que ele lhe deixou, do ponto de vista material(sentimental é inestimável), uma casa quase sem valor e os pertences, eu não posso cuidar deles – ele chorou, um choro leve, dolorido de quem saiu do trilho na vida, após a morte do companheiro - , estou doente, por isso ele deixou para você, um dia será um escritor famoso, Mauro disse que escreve muito bem, que emociona as pessoas. – disse Flores.
                    Uma casinha, dois cômodos e um grande galpão, tão bem cuidado que poderia ser a casa principal, pintado de azul.
                  -Azul sempre foi à cor preferida dele – disse Flores e depois sorriu parecendo lembrar de uma coisa engraçada, continuou de forma inexpressiva– as pessoas pensam que gay só gosta de rosa.
Antônio entrou no galpão, havia anos que não via o Tio ,ultima vez tinha sido antes da Mônica nascer, o que viu dentro do galpão foi cinco mil...
                  -Livros! – disse Antônio.
                  -Lindos, em ordem alfabética, a maioria livros que colecionadores davam a vida para ter, porém nem pense em vender, Mauro precisou de dinheiro uma vez e tentou vender alguns,livros não vale nada hoje em dia, ninguém quer saber deles, principalmente desses clássicos, são vendidos em bancas ao preço ridículo de um e noventa e nove.

                    -Ninguém lê nos dias atuais – disse Antônio – raciocinar implica em comprometer a sua opinião é isso que a leitura carrega, não há como fugir quando se lê, pensamos e questionamos.
                    Mônica correu para dentro do galpão com um pintinho amarelo na mão.
                   -Nossa! Quantos livros! - disse surpresa com o conteúdo do galpão azul.
                   Antônio puxou uma cadeira, procurou na letra C, depois retirou um volume e leu uma citação:
                  -“O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã” – disse e sorriu – puxa uma cadeira ai, tio Flores esse é um dos meus prediletos:O homem Revoltado, de Camus – Antônio avançou algumas paginas no livro, a filha parada com o pequeno pintinho amarelo na mão, entregou a Antônio, ele não se lembrava de ter tocado um animal tão sensível em suas mãos, olhou para filha que corria ao longo de todo o galpão, parou quase instantaneamente e gritou.
                   -Quando crescer eu vou ler todos. - disse Mônica girando o corpo no ar e correndo por todo o galpão.
                   -Seu tio disse que você é um escritor talentoso, deixou a seu cargo o que fazer com os livros, ficar ou vender, não me importo, não vou durar muito tempo, não serei a proteção que esses livros merecem – disse Flores.
                   -Eu me importo sim, e você vai durar uma eternidade, afinal, além de mim é o único parente vivo de Mônica – disse abraçando a filha e o amigo – nós ficaremos aqui por um tempo, afinal ela tem que ler todos não é ? Tem boas escolas aqui?
                  -Muito boas – disse Flores sem evitar a lagrima nos olhos – seu tio deveria ter conhecido ela, nossa!Ela é tão parecida com ele.

                 -E essa terra tio, é minha? - disse Antônio.

                O velho professor, saiu do galpão, Antônio o seguiu, depois apontou uma arvore a uns dois quilômetros.

                 -A té ali, perto da arvore, tudo é seu – disse Flores apontando para a arvore.

-                Que bom. - depois soltou a ave no solo – corra para nossa terra amigo.

POR JJ DE SOUZA




 

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 22/06/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4353088
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