Desabafo de Dor
“Um nada que nesse momento é meu tudo. É tudo o que tenho: horas para entender, para aceitar, para me despedir.”
As lágrimas que molham meu rosto são nativas de um amor que considero santo. A dor que as motiva a brotarem com tanta abundância tem origem na sua partida. O sol está nascendo. A mesa da vida está à disposição, mas hoje, o prato principal é a morte. O caixão que emoldura seu corpo não está aquecido. Não. Ele é frio ao toque. Frio o corpo do pai amado, ausência de calor que se reflete em mim, sua filha. Eu tremo, pai. A dor faz com que me curve na posição fetal. Tenho trinta e um anos e, no entanto, sinto-me como uma criança que precisa dos cuidados e carinhos paternos. Olho para seu rosto e espero que abra os olhos, que sorria e que me chame de filha, de meu amor, de sua maior riqueza… Nada. Um nada que nesse momento é meu tudo. É tudo o que tenho: horas para entender, para aceitar, para me despedir. Entender? Não é possível. Talvez um dia, mas não hoje. Seu coração ter enfartado não é entendimento. É causa da consequência de um abandono que considero prematuro e que não aceito. Como aceitar? Uma mulher se ajoelhou na minha frente há poucos minutos e me falou algo que ouvi com atenção:
“_Eu te garanto que essa dor vai passar. Acredite em mim.” Essa frase trouxe um pouco de esperança. De tudo o que me disseram até agora, o único discurso coerente ao meu coração foi o dela. Não sei quem ela é. Ela sabe quem sou. Chamou-me pelo nome. Identificou-se com meu sofrimento e, com a autoridade de quem por isso já passou, proferiu a sentença redentora. Olhei-a e agradeci as palavras proferidas que naquele momento continham um poder salvífico. Lembrei-me de Deus… Seria Ele falando comigo? Nunca antes tivera tantas perguntas e tão poucas respostas.
Teria que conviver com a ausência de meu pai. Teria que me dar a notícia a cada novo dia ao acordar, pois há acontecimentos que não cabem no tempo. Eles continuam sempre; são definitivos e definem nosso presente, redefinindo nosso futuro. Eu vou continuar. Sei disso. Diferente: mais mãe, mais esposa, muito mais filha na ausência, do que na presença. O sol que brilhara intensamente, indiferente à minha perda, começa a dar espaço para a noite… O caixão se foi. O novo dia que a escuridão anuncia pede celebrações de vida. Se condições ainda não tenho para celebrar, espero-o para fazer memória. A alegria voltará aos poucos. Os filhos querem a mãe, o marido que também já perdeu, vai me ajudar a ganhar no meu viver, o que do meu pai não foi enterrado. O que dele ficou, o que tenho em mim, é a alegria de viver, o amar intensamente, a capacidade de superar tudo e olhar para o futuro com olhos de quem confia. Na vida. No tempo que passa.
E… O tempo passou. O dia em que perdi meu pai, a alegria e a fé, ficou alguns anos atrás. Eu não esqueci. Aquela dor está presente, mas quieta na maior parte do tempo. Não esqueci e, no entanto, sobrevivi. Sua alegria de viver está em mim; foi herança que me deixou. A primeira vez que nasci foi da minha mãe. Nasci novamente naquele triste dia, depois de ter morrido um pouco. Sou, hoje, mais filha da dor de sua partida. Sua ida não pressupôs volta, o caminho que o levou não o devolveu. Aprendi a perder, aprendi a ganhar, consequentemente. Faz parte da vida. Hoje posso dizer isso. E tenho o direito de dizer também, que toda dor vai se transformando com o tempo. E continua a me transformar, me transformar…