Viver para contar
Rodrigo Capella *
Encontrar os amigos de escola e colocar a conversa em dia é sempre bom e, ainda, desperta sentimentos únicos. Percebi isso, nessa semana, quando uma amiga, após uma incansável busca pela Internet, conseguiu reunir os amigos de colégio e marcou um encontro num barzinho perto da casa dela.
Dez pessoas sentadas frente a frente com o propósito de olhar fotos antigas, tecer comentários e resgatar histórias engraçadas da vida. Quando escondiam o apagador da professora era uma gritaria só, todos se divertiam. Quando corriam pelos corredores, era uma tremenda curtição. É, a vida nos proporciona momentos inesquecíveis, cabe a nós valorizá-los.
Essa história toda me fez lembrar do livro “Viver para contar”, autobiografia do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, que se inicia com um recado ao leitor: “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. É, e é verdade. Logo nas primeiras páginas do livro, a mãe do autor pede para que ele a acompanhe até uma casa antiga, que seria vendida. Nesse momento, a cabeça do prêmio Nobel se assemelha a uma montanha russa, intercalando momentos reais e flash back, técnica consagrada no excelente e bem estruturado filme “Cidadão Kane”. É, é isso ai, o passado modela o futuro e dá os alicerces.
No livro, autor se lembra dos amigos de infância, dos professores, de quando iniciou no jornalismo ou ainda quando descobriu o que é sexo. “Viver para contar”, assim como “Cem anos de solidão”, outro clássico de Márquez, requer atenção. Lápis e bloco de anotação são necessários para guardar nomes, cenas e acontecimentos importantes. Muitas vezes não se sabe o que é real ou imaginário, tal como acontece no filme “Uma mente brilhante”.
Mas, essa era a intenção de Gabriel Garcia Márquez. A vida, para ser vivida com alegria, precisa ser compreendida em detalhes. Somente assim é que aproveitamos os momentos como se fossem únicos e planejamos cada segundo, colocando a criatividade em prática, seja ela subjetiva, concreta ou uma mescla.
Criatividade essa que nunca faltou ao escritor colombiano. Em “Viver para contar”, ele nos mostra como alguns fatos da vida se coincidem com a literatura. Seu avô, por exemplo, fabricava peixinho de ouro e no livro há um personagem que faz o mesmo tipo de trabalho. Além dessa criatividade acentuada, o que chamava a atenção em Marquez era a sua simplicidade e a cumplicidade com a literatura e com a própria vida: “nego-me a me transformar a literatura em espetáculo, detesto a televisão, os congressos literários, as conferências e a vida intelectual”.
É, vida e literatura se misturam, vida e literatura são parceiras, são essenciais e oferecem, ao mesmo tempo, o combustível necessário para continuarmos vivendo: as recordações, repletas de esperanças e de melhores momentos. É isso ai, precisamos valorizar a vida e ter fôlego para contá-la aos filhos, netos, bisnetos e, quem sabe, tataranetos.
* Escritor e poeta. Autor do livro “Poesia não vende”, que traz depoimentos de Ivan Lins, Carlos Reichenach, Barbara Paz e Sérgio Ferro, entre outros. Informações: www.rodrigocapella.com.br