Passe livre

Mais um dia de luta e labuta; Preparar aulas, aceitar desaforos, ser pisado pelo estado e sobreviver com uma miséria de salário. Faço tudo sorrindo, puto e sorrindo. Chega um tempo que as coisas precisam de mudanças, sair por ai protestando não é simplesmente putice de um desocupado é uma luta por direitos, por não suportar a ideia de viver de sorriso e conformismo. Clara provavelmente não vai gostar de receber um homem de olhos marcados, porém foi preciso!

-Boa noite.

-Que marcas são essas em seu rosto?

-Beije-me primeiro, depois falamos sobre isso.

-Não acredito, você estava manifestação. Eu te disse que era perigoso.

-Foi por uma boa causa, uma causa de todos.

-Uma causa que lhe deixou roxo.

-Não me arrependo de nada.

-Olhe para seu corpo, te quero vivo porra!

-Então aceite os protestos, estou apanhando por muitos.

-Sabe que estou em um momento frágil, grávida em cima de morro torcendo para que o salário dure até o final do mês e você ai dando a cara a tapa.

-Clara, cala a porra da sua boca, tenta entender que não estou dando a cara a tapa por um motivo fútil.

-Faça como lhe convém, esquente sua comida, vou dormir.

Clara é uma moça roída, triste e ainda sim linda, acredito que ela tenha medo de me perder talvez por ter perdido seu avô em uma manifestação em 66, sei que ela me quer bem e que assim como eu sofre por uma sociedade doente.

-Olha, aqui tem uma pomada para seus hematomas.

-Obrigada e desculpe-me por ter gritado com você.

-Não faça mais isso, tudo que falei é porque me importo com você, sei que o país precisa de revolução e que o caminho para isso é a manifestação do povo, mas vamos ter um filho você quer ser um pai ou uma história torcida?

-Posso ser os dois, não lhe prometo que vou parar de ir as manifestações, mas prometo-lhe que vou tentar ter cuidado e me manter vivo para ser um bom pai.

-Então faremos isso juntos.

-Como assim?

-Vou me manifestar a seu lado, cair de cara no mundo pois se é para morrer que seja por um ideal.

-Mas você está gravida.

-Gravida e saudável, se meu marido pode eu também posso.

-As vezes você me assusta.

-Deixe disso, não se esqueça de passar a pomada, te espero no quarto e amanhã vamos para as ruas.

Ainda pasmo, fiquei ali calado lambuzando-me de pomada, olhando para os dois ovos no prato e sentindo um cheiro forte de maconha vindo do quarto. Não intendia direito a cabeça de Clara, mas sempre admirei seus gritos e seus sorrisos insanos.

Lélia Borgo
Enviado por Lélia Borgo em 18/06/2013
Reeditado em 18/06/2013
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