A morte não manda recado

Quando o avô morreu, Nadico tinha apenas dez anos e viu tudo, desde o começo. O velho Honório caminhava pelo quintal com um bastão na mão direita e um cigarro de palha na outra. As pernas, trêmulas, vacilavam sob o sol das dez da manhã. Andava, a pedido médico, para melhorar a circulação. Nadico brincava perto e volta e meia olhava o avô em sua decrepitude. Às vezes, quando o velho o abraçava, comparava as rugas dele com sua pele macia e lisa. Pensava então que não seria bom ficar velho.

Honório andava em círculos e cada vez que passava por Nadico sua mão magra acariciava os cabelos do menino. Este olhava contrariado pro avô que não o deixava brincar sossegado. A cada volta, Nadico calculava a hora que sentiria a mão sobre sua cabeça. Contava até dez pausadamente e lá vinha a sombra do avô a se aproximar. Começou a achar graça na brincadeira. Iniciava a contagem e prestes a chegar ao número dez, sua respiração suspendia-se por segundos, para voltar ao ritmo normal logo que o avô passava. Num dado momento, contou dez, onze, doze até aos dezesseis e aí parou de contar. Virou-se. O avô, estacado a uns metros, tremia com as duas mãos apoiadas no bastão e o toco de cigarro a perder-se em sua boca descarnada. As pernas foram arqueando, corpo em declive, e o ar fugindo daquele senhor de quase noventa anos. Ele, num todo, foi inclinando de lado, sempre com as mãos no bastão, como se fosse a tábua da salvação. Nadico seguiu cada momento que se desenhou à sua frente. Fim da cena, aproximou-se do corpo estendido no chão, e se não fosse o lugar, a poeira levantada, o sol forte, diria que o avô dormia como muitas outras vezes já tinha visto. Saiu correndo procurando a mãe.

– Mãe, mãe, o vovô caiu!

A mãe correu, mas já era tarde. Ela chorou muito e depois que se acalmou foi providenciar o enterro e pediu a Nadico que avisasse os parentes e a vizinhança. Nadico voou de casa em casa e foi passando o recado:

– Meu vovô morreu.

E saía correndo pra outra casa não dando tempo para maiores detalhes.

Foi chamar o pai, que por ser domingo estava no bar do Gaúcho bebendo com os colegas.

– Pai, o vô morreu.

– Morreu? Já tinha passado da hora.

E virou seu copo de pinga num trago só.

– Deixa eu ir que hoje vai ser um dia daqueles.

E saiu meio que tropeçando nas pernas. Nadico olhava o pai sem entendê-lo. Às vezes falava bravo e dava risada e nada acontecia; em outras ria e lhe dava uns tapas sem saber por quê; noutras ainda ria, falava bravo e lhe batia. Mas sempre que vinha do bar lembrava-se de lhe trazer um doce qualquer. Gostava de uns de goiabada que vinham com uns brinquedos de plástico e, como o pai ia todo dia ao bar, aos poucos foi formando sua coleção. Eram feitos de plástico resistentes e não aqueles que ganhara do padrinho. Não duraram um nadinha.

Em casa pessoas entravam e saíam. Sua mãe, já mais calma, orientava o homem da funerária para a roupa que o falecido ia usar. Depois aplicou um severo sermão no marido no canto da cozinha (em meia-voz para que as demais pessoas que estavam na casa não ouvissem), por cheirar a cachaça bem naquele dia.

– Eu não poderia adivinhar que ele ia morrer logo hoje. Poderia ter deixado pra manhã.

E a mãe levantou o braço como se fosse esbofeteá-lo. Mas saiu pra sala a chamado da irmã.

Nadico permaneceu à porta do quarto do avô pra onde fora levado e iniciavam a troca de roupa. No rosto ainda permanecia a cor rosada, da pele clara, mas já dava sinais de desbotamento. “Que estranho”, pensava. “Agorinha estava andando, falando...” E ficava meditando na sua meninice coisas que tentava entender, mas não conseguia. Da mesma forma que o pai era lhe estranho às vezes, via na morte do avô um enigma ainda maior. “Que estranho...”

O homem da funerária trocava o defunto sem pressa, mas com mãos hábeis, como se trocasse uma criança. Ao cabo de alguns instantes e o avô já estava pronto... Pronto pra quê? Novamente Nadico ficava desconcertado. “Será que ele vai sentir a terra entrando em sua boca?” Nunca vira um enterro, mas o Paulinho, colega da escola, disse que já tinha visto o da tia.

– Eles enchem a pessoa de algodão pra não entrar bicho.

Nadico nunca acreditou muito na conversa de Paulinho que tinha fama de mentiroso. Mas ficou curioso para ver o avô ser enterrado. Mas não pôde. A mãe não quis deixá-lo ir. Teve que ficar com uma vizinha. Antes que o corpo saísse a mãe disse:

– Despede do seu vô.

Nadico chegou perto, olhou o rosto impassível e teve nojo de beijar.

– Tchau, vovô!

Foi o máximo que conseguiu fazer. E o caixão foi fechado, e o cortejo saiu. Nadico ficou olhando aquelas pessoas silenciosas, que um dia teriam o mesmo fim, como ele e todos os outros. Nesse momento teve medo. Não conseguia se imaginar sem a mãe. Gostava também do pai, mas era diferente. Como a mãe poderia parar de falar a qualquer momento? Como? Olhou então pras mãos e com uma delas começou a beliscar a si mesmo. Se um beliscãozinho destes já doía, imagina quando morresse então... Ia doer muito mais. Não gostava de sentir dor. Será que poderia morrer dormindo? O Silvério, pai do Biluca, morreu assim.

Nadico cresceu e a imagem do avô morto ficou impregnado em sua mente. Ficou estarrecido como a morte chega de supetão, sem aviso prévio ou convite. Honório, apesar da idade, estava ali, vivo, se mexendo de um lado a outro, resmungando, bocejando, falando coisas sem nexo, mas estava VIVO! Minutos depois, nada daquela massa corpórea permanecia em movimento, e horas depois tudo se acabava num buraco coberto por placas de concreto e terra, e nunca mais seria visto.

Já adulto, a ausência de alguém da família por muito tempo, ou de um conhecido, dava-lhe a sensação angustiante de que algo de ruim teria acontecido.

– Meu Deus! Por que não chegaram ainda?

Seus pensamentos funestos os guardava pra si depois que fora repreendido pela esposa.

– Onde já se viu! Você só pensa em tragédia.

Daí em diante não compartilhou com ninguém mais as suas apreensões e temores. Quando estava incomodado com algo ou alguém, buscava nos livros que gostava de ler, nos programas televisivos que gostava de assistir ou nos passeios que gostava de fazer, a cura para suas angústias.

Andava pela rua, acabrunhado, com medo de ser atropelado e morrer na sarjeta de uma rua qualquer. Não passava por um semáforo sem antes se certificar de que as luzes estivessem todas verdes e ainda não haviam iniciado a se apagar. Remédios mal administrados, outro pavor que lhe assaltava com frequência. Lia a bula de cabo a rabo e depois de uma consulta ou outra ao farmacêutico, tomava, não de todo aliviado, mas se vendo obrigado para se curar de uma crise asmática ou uma virose mais violenta. Portas abertas, janelas mal fechadas não lhe davam bons pressentimentos. Em momentos de efusiva alegria, quando os sentimentos estavam relaxados, quando se encontrava em instantes de rara descontração, algo vinha de súbito chamando sua atenção para a vigília diária. Quem muito ri, muito chora. Não se permitia ao descuido e à negligência. Queria estar alerta. Trazia sempre em mente uma frase de um livro de Marguerite Yorcenar, que resumia sua preocupação: “Esforcemo-nos por entrar na morte com os olhos abertos”. E no que dependesse dele, assim seria.

Ele foi avançando nos anos e viu e ouviu muitas mortes: prematuras, de pessoas velhas, novas, de acidente, morte natural, assassinatos, suicídios, e em nenhuma delas, que se recorde, os familiares acolheram com a paz de espírito ou com o conformismo que um terceiro sente já que não é ele quem sofre. Quando a mãe morreu, parecia que faria o mesmo. Tudo nele parecia sem fim algum. Nada do que fazia tinha agora sentido. Pra quê? Morreremos daqui a pouco. Já a morte do pai parecia mais previsível. Morreu de cirrose.

Viu a morte da mulher, dos filhos, e a dele próprio, que tanto temia, nunca chegava. Quanto mais avançava nos anos, ficava-lhe a convicção de que fora esquecido, se é que isso era possível. Não tinha um dia que não acordava imaginando-se em outro lugar que não fosse sua casa. Mas aos poucos, lentamente, às apalpadelas, ia se encontrando deitado em sua cama e em seu quarto, e verificava que não fora desta vez.

De qualquer forma, sabedor de que a qualquer momento algo de novo poderia acontecer, tomava algumas medidas práticas. Deixara todas as contas em dia, principalmente o salário de sua empregada, para que não passasse necessidades. Doou os poucos livros que ainda tinha, deu os passarinhos que desde garoto gostava de cuidar e procurava sempre se manter bem arrumado, para que nenhum estranho viesse pôr-lhe a mão e o trocasse como se fosse um bebê. Outra medida que fazia questão de tomar para não ser pego de surpresa era se manter sentado na varanda. Não queria que lhe acontecesse como ocorrera com o avô Honório: ir ao chão a qualquer momento. Não suportaria ver a si mesmo, além de morto, sujo de terra. E se não tivesse alguém perto, como ele esteve presente na morte do avô? Essa probabilidade era plausível já que morava sozinho, tendo apenas a empregada como companhia para fazer os serviços da casa.

Assim, toda tarde ficava na varanda, sentado, com o olhar perdido não se sabe aonde. Passavam conhecidos pela calçada, cumprimentavam-no, chamavam para um passeio e nada do Nadico aceitar. Seu olhar se fixava em um ponto para além de suas cercanias; um ponto que só ele via, um lugar enigmático que só ele podia distinguir. Lá, de remota região, a morte viria buscá-lo. E quando isso ocorresse, ele estaria ali, naquele mesmo lugar, de olhos bem abertos, para poder recebê-la se é que ela tinha alguma forma definida, concreta, que pudesse ser reconhecida.

Entre a espera e o nada, Nadico fez cem anos. Há tempos não sabia o que era comemorar aniversário. Mas aquele dia foi uma exceção. Mais por insistência de Norma, a empregada, e de raros conhecidos do que por ele próprio. Acabou por aceitar.

Teve bolo, doces, nada faltou. E, obviamente, presentes.

– Não precisava. Nessa idade já não ligamos mais para certas coisas.

Ganhou uma camisa de Norma que guardou no quarto, sabendo de antemão que não usaria. Do vizinho Euclides, alguns apetrechos e vara de pescar, como se ele tivesse pretensões de sair além do portão. De Josias, um par de sapatos, que fatalmente ficaria empoeirado em algum canto. E só. Poucos presentes, poucas pessoas.

Foi por volta das onze da noite. Todos já tinham ido. Nadico arrumava algumas coisas fora do lugar na cozinha quando passou mal. Sentiu-se trêmulo, o coração acelerou, suava. Correu para a varanda. Queria sentar em sua cadeira, respirar.

Com muito custo conseguiu sentar.

– É hoje... Finalmente. Conhecerei sua cara? Qual sua face, ou todas elas?

Puxava o fôlego.

– Vamos... Venha... Qual será seu mistério? O mistério da vida que nos consome? Toda uma vida resumida a isso: uma vala comum nos aguarda e nada mais. Pois que venha, seja lá o que for e como for.

Nadico se contorceu na cadeira, mas não passou de um susto. Nada teve de mais grave, apenas um mal-estar.

Extenuado, praguejava por tal situação.

– Será isso vida? À beira da morte e nada? Agonizar não será pior que morrer?

Nadico cogitava e, pregado à cadeira, não sabia mais o que pensar ou a que conclusão chegar. Há muito se entregara aos acasos da sorte. Tirar a própria vida nunca lhe passou pela cabeça. Tinha dois motivos pra isso: faltava-lhe coragem e não faria algo contra o que Deus lhe concedera.

E Nadico se aferrava à cadeira como se petrificado. Ali cochilava, sonhava com pessoas queridas, acordava, tornava a dormir. Levantava poucas vezes, apenas para refeições rápidas ou ir ao banheiro. Tudo lhe era desnecessário. Tudo mesmo.

Norma chegava de manhã e via o patrão, como sempre, sentado. Ele não fazia outra coisa senão ficar do mesmo jeito. Às vezes ela sentava perto dele e lhe fazia companhia. Conversavam um pouco e logo ela ia aos seus afazeres. Mas ele cada vez mais silenciava.

Nunca, que ele soubesse, conhecera alguém tão obstinado para a morte. Lera a respeito, procurou um centro espírita, mas isso não o apaziguou. Lembrou-se da analogia que se fazia entre o sono e a morte. E começava a se apegar a isso: procurava dormir o mais que podia. Com a idade, o sono de fato se prolongava. Um dia, pediu a Norma:

– Quando me vir aqui a dormir, não me acorde, jamais. Ouviu?

E de fato ela atendeu seu pedido, sem entender bem o porquê. E lá ficou a dormir, esperando que de um momento para o outro acordasse – só não sabia onde.

Odair Albuquerque
Enviado por Odair Albuquerque em 17/06/2013
Código do texto: T4346256
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