O Sonho de Alice
26/01/1971
Acorda às 4 horas da manhã para ajudar a mãe a lavar as roupas das “madame” da cidade.
Era filha única de um casamento forçado em que o pai, após dois anos junto da mãe, resolveu abandoná-la para viver com outra mulher em outro Estado.
Não freqüentava a escola, a mãe ensinava a ler e escrever, a somar e subtrair o básico pois tinha que saber dar o troco e ler os recados exigentes das clientes da mãe.
Assim passava mais tempo em casa ajudando a mãe, que por sua vez, também teve de aprender tudo em casa com a própria mãe para ajudá-la na mão-de-obra dos serviços de limpeza que a mesma fazia nas casas dos ricos da Cidade Alta.
Alice tinha poucas bonecas e as poucas que tinha estavam velhas, sem roupas e sem cabelo. Sempre pedia ao Papai Noel uma boneca nova, mas por alguma razão as cartas dela não chegavam até ele.
“Ele deve estar muito ocupado lavando roupa” Dizia sua mãe num tom amargo.
Ela não entendia o que a mãe queria dizer, por que o Papai Noel iria lavar roupa com tanto presente para entregar?
E na noite do dia 24 ficava acordada até a manhã do dia 25 esperando ele chegar com a boneca nova dela.
Ele não vinha, mas ela agradecia então a mesa farta com arroz, feijão, carne assada e salada, pois nessa época do ano podia-se repetir a refeição, então ela o perdoava.
Com 16 anos e já adolescente, foi trabalhar na casa da Doutora Célia, uma médica para quem a mãe dela lavava roupas. O pouco dinheiro que recebia era para ajudar em casa e quando a mãe estava de bom humor, deixava ela comprar uma boneca nova, desde que fosse bem baratinha.
“Mãe, posso estudar agora?”
“Agora que trabalho e te ajudo a pagar as contas, eu posso estudar?”
“Desde que você não volte com a barriga “prenha” pode sim. Mas só se você prometer fazer tudo direitinho na casa da Doutora Célia e fugir dos rapazes da escola.” Não entendeu o que a mãe quis dizer com “os rapazes da escola”, mas tudo bem.
Alice sonhava em ser professora de Português. Achava incrível uma pessoa saber tanto ao ponto de ensinar todo mundo.
Então ela teve de entrar na 3ª série da Escola Fundamental Maria Ortiz, que fica ali no Centro da Cidade mesmo, sob a condição de “aluna especial” pois só sabia ler e escrever frases curtas e somar e subtrair contas pequenas, geralmente só dezenas, pois sempre se enrolava nas contas que possuíam muitos números. “Como tirar R$ 500 de R$ 2000, é muito dinheiro e eu não posso errar senão mamãe me bate.”
Mas a professora disse que se ela se esforçasse e tirasse só notas boas, poderia colocá-la na turma da 5ª série no ano seguinte.
E ela sentia-se imensamente feliz. Estava realizando um sonho. E no primeiro dia de aula logo foi apelidada de “gigante burra”, “garota repetente” e “quatro olhos” por usar óculos de grau devido ao seu 1,5 grau de miopia.
Então se isolava e não conversava com ninguém, a professora tinha que inseri- lá nas rodas de brincadeiras. Mal chegava na sala e sentia vontade de ir embora e chorar o dia todo, mas o sonho dela era maior do que a vergonha, então estava disposta a suportar aquilo todo dia.
E como toda garota de sua idade se apaixonou. O nome dele era Pablo, era moreno, alto, de cabelos lisos caídos nos olhos, mascava chiclete o tempo todo e era da 8ª série.
“Ele deve ser muito inteligente, já está na 8ª série!...”
Agora ao menos, tinha Pablo para dar mais ânimo de ir à escola e nos intervalos parecia que ele a olhava quando estava na roda de amigos e ela ficava toda envergonhada.
Um dia, depois da aula, veio um dos amigos dele entregando-lhe um bilhete que dizia “Me encontre no Parque Moscoso às 18 horas. Pablo.”
Ela não acreditou e até abraçou o amigo dele de tanta de felicidade, que logo riu e se despediu.
22/03/1985 18:02
Ela vestia um vestido rosa, meio velho mas ele estava bem passadinho. Usou o perfume da mãe escondido e saiu dizendo que tinha que terminar de fazer a janta na casa da Dra Célia e que logo, logo estaria em casa.
“Não volte tarde viu mocinha! Não quero neto nessa casa tão cedo ta ouvindo?”
“Tá bom mãe, tá bom..”
Pablo já estava lá. Lindo com os seus cabelos lisos caídos nos olhos. Estava de calça jeans e camisa azul e mascando chiclete, como sempre.
Ela sorria de longe e ele sorria para ela. O coração parecia explodir de tanta alegria. Era com certeza o dia mais feliz de toda a sua vida, tinha total certeza disso.
Mãos suadas e trêmulas, estava muito nervosa e não sabia o que dizer à ele.
Então ele se aproximou e a cumprimentou e ela fez o mesmo. Iniciaram a conversa falando sobre as matérias mais difíceis da escola, os professores chatos e sobre as bandas que gostavam de ouvir.
Ele então passou as mãos em seus cabelos pretos encaracolados, olhando bem para os olhos castanhos escuros dela em meio aquele rosto branquinho cheio de sardas e disse “você é linda” e aproximou o seu rosto do rosto dela e enfim, ao ouvir o respirar dele, sentiu que os braços dele estavam a forçar os ombros dela para baixo como se ele quisesse algo indecente com ela.
E Pablo abriu as calças. “Depois eu te beijo gatinha, agora dá um beijo nele vai..”
E ela fez.
E fez mais o que ele pediu e sem camisinha.
E então, ali, atrás de um banheiro público do Parque Moscoso, Alice acabava de ter a sua primeira relação sexual.
Passado-se 15 minutos, ele já satisfeito, disse que teria de ir embora logo, pois não poderia chegar muito tarde em casa e que no dia seguinte iria conversar com ela na escola.
“Mas..” ela suspirou angustiadamente.
Abaixou então a cabeça e foi para casa, cheia de pensamentos confusos na cabeça. Não entendeu porque que ele não a beijou.
Ele disse que ela era linda...
Entrou em casa com algumas lágrimas nos olhos e a mãe logo perguntou o que havia acontecido e ela disse que tinha caído na escada da casa da Dra Célia e que não precisava se preocupar pois já estava bem.
Foi direto para o quarto. “E você não vai jantar não menina?”
“Já jantei na casa da Dona Célia mãe, obrigado. Eu só quero dormir mesmo. Boa noite e benção.”
“Deus te abençoe e vê se não chega atrasada na casa da Dona Célia amanhã, pois esses dias ela veio reclamar que você chegou 15 minutos atrasada e quase teve que chamar outra pessoa pra trabalhar no seu lugar. Olha bem o que você anda fazendo hein mocinha! Senão corto você da escola rapidinho!” Disse a mãe, enquanto ela tentava dormir.
No dia seguinte no corredor da escola, percebeu que a turma de Pablo estava dando gargalhadas ao olhar para ela, e viu-se caindo em um buraco escuro sem fim dentro de si mesma.
Como uma onda violenta de um mar revolto, sentiu a tristeza pesar cruelmente sua alma pela primeira vez e saiu correndo chorando em direção ao portão da escola rumo ao Parque Moscoso.
Chegando lá, sentou-se e ao conversar com os passarinhos que pousavam para comer alguns grãos de alpiste jurou nunca mais se entregar a ninguém. Ninguém.
“E se mamãe souber disso, me põe pra fora de casa..”
E chorou toda a manhã ali.
Acordou no dia seguinte sem ânimo algum, afinal um dos dois ânimos dela tinha a frustrado então só lhe restava o sonho. Ahh os sonhos..
E ao pisar no corredor para até chegar na sala ouviu gargalhadas, mas imaginou que quando se tornasse professora iria passar perto desses garotos e ela então daria risadas e continuou a andar pelo corredor.
Na hora da saída a mesma coisa. E todos os dias durante nove meses do ano letivo inteiro foram assim. Além de ser a “gigante burra” agora era também a “garota usada”. Mas estava perto de ir para a 5ª série e só isso importava. Só.
“Quanta tristeza Senhor, me dê forças...” Rezava todos os dias para que não sentisse essa mágoa e essa decepção que a esmagava por dentro.
09/05/1985 10:03
Alice não vai à escola há duas semanas e sua professora de Português, Joana se preocupou pois Alice não faltava nunca, nem quando tinha febre. Joana pediu que a pedagoga ligasse para a casa dela e procurasse saber de algo pois ela era uma das melhores alunas da escola e seria triste perder uma aluna assim. A pedagoga ligou imediatamente para uma vizinha de Alice, pois ela não tinha telefone fixo em casa.
Cinco minutos com o telefone no ouvido e a pedagoga disse com lágrimas nos olhos: “Ela não poderá vir mais, está com Aids.”