SOSTV
O Trator
- Tem uma pessoa embaixo do ônibus? Pergunta o apresentador enquanto os dedos da mão esquerda coçam a coxa esquerda.
- Sim. Vou apurar melhor. Responde a repórter farejando boa audiência.
- Faça isso. Nossos telespectadores precisam saber em que estado se encontra a vítima.
- Tenho mais informação. Interrompe a repórter.
- Isso é muito bom para a democratização do fato. Range os dentes o apresentador.
- Aparenta trinta anos. Devido à enorme mancha de sangue no rosto não é possível afirmar se é feia ou bonita.
- Repórter há fraturas, há vida, pois a quantidade de ferro sobre a carcaça do indivíduo, digo que dificilmente a vida não sucumbe. Coça o saco disfarçadamente.
-Tira a mão do saco, porra! O produtor desesperado grita no ponto eletrônico.
- Daqui, do espaço onde me encontro, é visível uma massa de sangue. Continua a repórter.
- Manda o cinegrafista se posicionar melhor. Precisamos da imagem detalhada. O apresentador sedento pelo ângulo mais deprimente.
- Assim está bom?
- Melhorou. Ficara satisfatório se direcionarmos um facho de luz no corpo da vítima. Falando isso ele levanta a mão direita, direciona a vista para a palma da mão que esta com os dedos abertos como se fosse uma cúpula e mira como se da palma da mão brotasse uma luz.
- A tomada elétrica está sendo localizada.
- Enquanto isso não acontece – diretor corta pra cá, pro estúdio. Isso… pode fechar que eu ainda aguento close. Um risinho idiota tentou se
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manifestar. Vamos mostrar como os pneus derraparam sobre o asfalto.
- Mostre cinegrafista. Seus dedos coçam incessantemente as coxas.
A frenagem é de dez metros, mais ou menos, riscou o asfalto. No chassi do bruto, enganchado, o corpo.
- Repórter faça uma varredura e se possível encontre pertences da vítima, talvez a dentadura: se a pessoa for idosa é provável ter este suporte mecânico e estético e por que não dizer técnico.
- A polícia isolou a área para não haver saque no ônibus, já que este se encontrava lotado na hora da tragédia, já que informaram a polícia que o acidentado saia do banco com um envelope pardo...
- Espere repórter! O apresentador afobado. Acaba de chegar… informação… da redação: a vítima - esta frase ele a carrega tanto que parece estar com um pedaço de batata quente na boca - como diria o jornalista Ferreira Neto a respeito de certa atriz - tem cinquenta anos e no envelope contém o vírus ebolaaaa! Paralisado por dez segundos. Então reage desesperado. - Corta, corta diretor. Vamos aos comerciais. Passa a mão no saco rapidamente.
- Não! Esperem! Diretor repita! A repórter que está no foco da tragédia abismada com a notícia olha para o povo e se olha também.
-Tira a mão do saco, caralho! O produtor se descabela ao lado do diretor de tevê.
- Esta informação é falsa. Fomos vítimas de um trote.
- Apresentador, produtor - a repórter desesperada – você, produtor disse que no envelope existe o vírus ebola? Pode confirmar…? Está picotando o áudio…
O diretor cospe mando no olhar.
- Área técnica, eu preciso de respostas!!! A porra do áudio não funciona!!! Berra.
A repórter continua.
- Vou prevenir as autoridades e as pessoas para esta terrível informação obtida em primeira mão!
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- Não! Repórter, não é nada disso! O apresentador bamboleia os dedos em ritmo frenético na coxa direita. O produtor injeta sangue na jugular com tanta pressão que soltou peido de sonoridade absurda.
- Não é nada disso? A repórter desconcertada. Cadê a produção? Está havendo mal estar por aqui. Alguns elementos, agitadores, querem colocar fogo no ônibus pra matar o vírus e o acidentado, se é que este já não partiu desta.
- Repórter, poupe o telespectador. A tua conclusão não nos interessa. Diga ao povo que fomos vítimas de trote; também estamos sujeito a brincadeira de mau gosto.
- Vou me explicar com a opinião pública local e desmentir a informação.
- Enquanto se entende com o povo deixa o cinegrafista mostrar o local especificamente onde começou o motorista do ônibus a frear. E em que ponto desta freada o corpo fora atingido e em que parte da trajetória “arrastante” o corpo se desprendeu. Vá cinegrafista! o telespectador quer informação relevante. Chega de mostrar este alvoroço criado por causa de um trote. Fomos vítimas! Quero ver se o pé da vítima sofreu alguma avaria. Não é possível… ser arrastado e não deixar pedaço de unha ou pele fixado no asfalto, não é telespectador? Um olhar triste firmou enquanto o close ganha vida.
O cinegrafista mostra.
A audiência mostra.
O produtor mostra.
A repórter se retrata.
No entanto, a confusão no centro de exibição está formada. Um diretor da emissora que assistia a programação, não gostou da notícia transmitida e mandou tirar do ar o programa. O diretor
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responsável pela grade de programação disse que isso não seria possível, pois os enlatados ( produtos importados - filmes, séries novelas, programas, etc… etc…) se encontravam com os contratos de exibição vencidos e a multa elevada caso fossem veiculados. O diretor do programa chamou o diretor da emissora para frente da tela que marca a audiência e apontou para os gráficos.
- Isso aqui não é motivo suficiente para continuarmos com a nossa programação?
- Não podemos alarmar o povo com notícia de tal relevância sem antes filtrá-la. Como vocês recebem a informação e não questionam?
- A culpa é do estagiário.
-Do estagiário! Incrédulo o diretor.
-Estamos providenciando a eliminação do indivíduo. Vamos extirpá-lo dos nossos quadros… Onde já se viu um novato causar todo esse reboliço!
- Veja, subimos três pontos. O diretor do programa feliz. Apresentador, apresentador, está me ouvindo. Ponto eletrônico! Grita. Esta porcaria nunca funciona!
- Ligue o aparelho. Diz o rapaz que cuida da saúde da comunicação.
- Apresentador, continue nesta linha de pensamento, nesse raciocínio “serelepe”. Pede para a repórter perguntar aos moradores se o acidentado é do bairro.
- O cinegrafista se recusa a mostrar detalhes da fratura exposta. Interrompe a repórter
- Como é? o produtor irritado. Não quer mostrar os ossos quebrados e expostos. Fala pra este imbecil que estamos numa corrida para a liderança e que não fomos nós que quebramos os ossos desse infeliz. Mostre e mostre detalhadamente… se isso não acontecer será desligado da empresa.
A repórter explica para o cinegrafista a posição do produtor.
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- Tô cagando pra esse produtor. Não vou mostrar e fim de papo! Cagando pra você! seu imbecil! Biltre! Caguei, caguei pra você! E o seu jornaleco de cu.
A repórter, preocupada, viu a carreira sumindo. Não pensou duas vezes chamou o auxiliar técnico.
- Sabe operar a câmera?
Ele percorreu com os olhos o corpo dela e disse:
- Sei um pouco. Se não pedirem muito close até me saio bem com o foco.
- Ótimo. Chamou o cinegrafista de lado e disse que o motoboy iria levá-lo para a emissora. Uma matéria, recomendada pelo dono da emissora, necessitava da captura de imagens feitas por ele. O cinegrafista sorriu o riso dos ganhadores. Largou a encrenca e pegou mamão com açúcar. Pensou o lerdo.
Assim que ele passou o posto para o assistente a repórter ligou no celular do produtor e descarregou:
- O auxiliar está fazendo as filmagens e o cinegrafista está indo pra redação. Faça o que quiser com ele. Só não posso perder meu emprego por causa de frescura.
- Você fez o certo, menina. Vamos continuar, pois estamos na liderança e esse capiau quando chegar aqui nem vai entrar na redação, no RH o esperam ele e a tal estagiária que causou todo esse mal estar.