SEU VALDIVINO
Quando conheci seu Valdivino, eu devia ter mais ou menos dez anos de idade.
Um parente de Barretinho era casado com uma mulher do interior que, com a morte da sua mãe, já bem velha, herdou um engenho no município de Maraial, zona da mata sul de Pernambuco.
Nessa época os engenhos de Pernambuco plantavam a cana, faziam os tratos culturais, queimavam a palha seca na véspera do corte, transportavam em lombo de burro ou em carros de bois, moíam e da garapa, fabricavam o açúcar, o melaço e as rapaduras nos tachos ferventes e, com o descarte, fabricavam o álcool e aguardente que eram as marcas registradas dos donos dos engenhos que, no dia a dia ou em épocas de festa, mantinham a disputa para ver quem era o fabricante da melhor, da mais forte e da mais saborosa.
O bagaço de cana, rejeito da moagem, era atirado na bagaceira, onde os bois pastavam para aproveitar o adocicado da fibra, que era utilizada como combustível para a fornalha.
Para que tudo isso funcionasse bem, os engenhos eram verdadeiras cidades em miniatura, como os feudos medievais.
Muitos dos senhores dos engenhos se gabavam de que em suas terras, quase tudo se produzia, sendo necessário comprar apenas o sal, a pólvora e os pregos.
Atendendo ao convite do parente transformado em senhor de engenho da noite para o dia, o pai de Barretinho organizou a caravana que iria passar os dias feriados do carnaval nas terras do engenho.
Depois de um enorme rosário de recomendações, fui autorizado a me juntar à caravana, exultante de alegria.
No sábado de Zé Pereira, às seis horas da manhã, estávamos na plataforma da Estação Central para pegar o trem de Alagoas.
A composição se pôs em movimento exatamente às seis e vinte. Primeiro as casas, depois os mangues, as pontes, os bairros afastados do centro e o Recife ficou lá atrás, enevoada por causa da Maria Fumaça que jamais deixou de fazer jus ao apelido.
Mais de quaro horas depois, chegávamos ao destino. Éramos sete. Seu Barreto e os três filhos, Barretinho, Pereba e Maria; eu, Cabeça da Burra e Barata Descascada.
Ao lado da estação estava a carroça, puxada por dois cavalos, que iria nos levar para o engenho e junto a ela, o senhor Valdivino. Seu Barreto nos apresentou pelos nomes:
- meus filhos, Antonio, Pedro e Maria e os coleguinhas deles João, Luiz e Pedro.
(Como era diferente ouvir chamar-nos sem ser pelos apelidos)
Um a um, apertamos a mão dura de calos daquele homem troncudo, com chapéu de massa na mão esquerda, olhos azuis e sorriso desdentado. As botinas sujas de lama denunciavam os efeitos das chuvas de janeiro que, como diz o ditado popular, tardam, mas não faltam.
Encarapitados na carroça, fomos levados pelas estradas esburacadas, cheias de lama, até a varanda do engenho.
O trem já havia seguido a viagem, deixando o rastro de fumaça no ar... Na quarta feira, logo depois do almoço, pegaríamos outro trem de volta para nossas casas.
Tudo aquilo era um encantamento para nossos olhos infantis acostumados às coisas da capital e foi o seu Valdivino, o mais idoso do engenho, o encarregado de nos mostrar toda aquela maravilha.
Éramos seis seguindo-o, desde as primeiras horas do dia, querendo saber de tudo, fazer de tudo, experimentar de tudo.
Com a paciência de monge tibetano, seu Valdivino explicou como tirar leite, como cortar o capim, como medir o piolho (era assim que ele chamava o caroço do algodão) para dar a cada uma das vacas leiteiras;
Como prender nos cambitos, a cana cortada para levar para a moenda;
Como segurar a imensa colher de pau, amarrada por corda num dos paus do telhado, para mexer a garapa fervente e como usar a espumadeira de cabo longo, sem se queimar;
Como cortar a rapadura com a faca peixeira, sem se cortar;
Como prender nas varas para secar, o couro do bode que iria virar buchada para comermos no almoço do domingo.
Depois da missa, aprendemos a celar os cavalos que iríamos usar pelo resto do dia.
Seu Valdivino era cria do engenho, nasceu, cresceu, casou e ficou viúvo sem nunca ter saído de lá.
Não teve filhos por isso vivia só num casebre de taipa perto da porteira do engenho.
Fazia as refeições na cozinha da casa grande, sentado na cabeceira da mesa longa e ensebada pelos muitos anos de uso, e comia de bom grado, tudo o que estivesse ao alcance das mãos.
Ele fazia parte integrante e inseparável do engenho, como os canaviais, o rio com suas pedras polidas, a casa de purga, a moenda, a fornalha, as casas dos moradores, as pequenas roças provedoras de subsistência, os animais, as tralhas, as ferramentas, tudo enfim que compunha aquele mundo único, diferente e, para nós seis, deliciosamente desconhecido.
Seu Valdivino estava consertando o assento de uma cela e fez questão de mostrar o passo a passo, respondendo a cada uma das nossas perguntas.
Levou-nos para tomar banho no rio, ensinando como não ser levado pela corrente e como pular do galho de uma ingazeira. Com a voz mansa ele recomendou:
- deixem as roupas nessa pedra mais alta que é para não molhar. Vocês são pequenos, não faz mal que tomem banho sem roupa todos juntos.
À noite, na varanda, contava arrepiantes histórias de assombração que faziam a gente demorar para conciliar o sono, apesar do cansaço do dia.
Eu quase morri de medo da mulher de branco, que vem toda noite, pegar no punho da rede do menino que estiver acordado até altas horas.
Foram dias maravilhosos, muita comida diferente, muitas frutas maduras tiradas dos pés, muitas raspas de tachos dos doces comidos ainda quentes.
Mas o feriadão chegou ao fim e tivemos que nos despedir. Com os olhos cheios de lagrimas dissemos adeus a seu Valdivino.
Nosso encontro foi o primeiro e único.
Soubemos depois, que na mesma semana, seu Valdivino não chegou à cozinha, logo cedinho, trazendo o leite. As vacas ainda estavam presas no curral.
Foram verificar e seu Valdivino estava na cama, sem poder se mexer. Sujo de fezes e de urina, ele foi levado para o hospital regional onde constataram o derrame cerebral.
Nunca mais nós vimos seu Valdivino...