MUDANÇAS
Saí às cinco horas de casa. A noite toda chovera. Mas agora cessara, embora o céu ainda permanecesse carregado. Meu primeiro freguês aguardava-me na porta de um hotel de quinta categoria. Ajudei-o a entrar no táxi e coloquei a cadeira de rodas no porta-malas. Queria me queixar da sorte, da noite mal-dormida, do perigo que é dirigir em Porto Alegre, do pouco ganho no dia, do tempo que ficava ausente de casa, que não via nem meus filhos; de ter feito faculdade e enterrar meus conhecimentos atrás de um volante, e outras queixas mais. Mas parei, quando o homem terminou a história. Sou um sujeito de sorte, concluí,
Arranquei o veículo e não fiz qualquer comentário. Nem mesmo sobre o tempo, a chuva. É costume proceder assim. Espero que o freguês fale. Se não fizer, também calo. O freguês é quem manda. E hoje também fiquei calado, mas de boca aberta, queixo caído. Tanta desgraça num homem só nem dá pra acreditar. Mas o infeliz trazia estampado no rosto, em cada traço, a marca do sofrimento.
Quando chegamos à porta do hospital, desliguei o taxímetro. A história ainda andava lá pelo meio, se bem entendi. Gosto de dinheiro, é claro, e preciso dele para sobreviver, para sustentar a família, mas no momento achei que poderia dispensá-lo. O homem estava arrasado, explodindo. As lágrimas pingando no banco. E eu nem podia reclamar. Somente ouvir.
Era o único filho de um casal de empresários. Tinha tudo. Antes de pedir, os pais já estavam satisfazendo-lhe os desejos. Especializou-se em neurocirurgia nos Estados Unidos. Carreira promissora, sucesso. Era vaidoso, inflexível, mulherengo. Apaixonou-se pela filha do diretor-médico do hospital e com ela casou-se. Por ocasião do parto do primeiro filho, a mãe e a criança morreram. Ficou desesperado. Mas o amor pela profissão fez com que logo se recuperasse.
Pouco depois, voltou a casar. Na primeira gravidez, teve um medo descontrolado de que o mesmo acontecesse. Mas tudo correu bem. No parto seguinte, nasceram gêmeos. Enquanto as crianças cresciam, voltou às mulheres, misturando com doses altas de bebidas. Mesmo assim, era perfeito nas cirurgias. Seu nome tinha fama internacional. Montou uma clínica, com a ajuda dos pais.
Tudo parecia perfeito. Somente parecia. Os pais foram à falência. Não suportando a perda, deram fim à vida. Logo descobriu que o filho mais velho era hemofílico. Mais tarde, o mais terrível: o rapaz contraiu aids e morreu. Em meio à dor e ao sofrimento, descobriu-se diabético. Já não tinha o mesmo sucesso nas cirurgias, cometeu erros. Um processo terminou por abalar definitivamente a carreira. Precisou voltar à terra natal.
A clínica também não prosperava, ao contrário, tudo ia à derrocada. Seu nome era sinal de alerta. A clientela diminuindo. Uma noite, viajou com os gêmeos e a mulher para um fim-de-semana na serra. Precisava descansar, pensar em como resolver os tantos problemas em que se via envolvido. Foi para o cassino. Perdeu e bebeu até não mais saber quem era. Sem se recuperar bem do porre, dirigiu de volta para casa. Agora, além de a cabeça não estar clara, a situação ia de mal a pior. No carro, gritou com a mulher, xingou os filhos, fez ameaças. A vida pregara-lhe uma peça. Estava ficando pobre, sem prestígio, perdendo a profissão e ainda esta família chata vem lhe cobrar postura, bons modos. Será que não entendem? Sente-se enlouquecer, com o mundo virando de cabeça para baixo. Que se calem. Não quero mais ouvir nem uma voz. Basta.
Quando abre os olhos, está tudo nublado. Pergunta: quem está aí, onde estou, o que aconteceu? E ninguém responde. Tenta levantar, mas está preso a fios. Reúne as forças e grita. Logo, pessoas estão rodeando-o. Um médico cumprimenta-o, alegre, dando os parabéns por ter finalmente despertado. Pede que fique calmo, que está tudo bem, que esteve em coma por um mês, mas que tudo está sob controle, que está reagindo de modo satisfatório.
Aos poucos, vai-se inteirando do ocorrido. O carro caiu num precipício. Todos morreram. Ele tinha sofrido uma contusão cerebral, havia perdido um olho e uma perna.
A única coisa que recordava era de estar viajando de volta para a cidade. Somente mais tarde é que se lembrou da briga com a família. Nunca conseguiu descobrir como foi o acidente. Ficou ainda mais um mês no hospital. Embora já estivesse recuperado, havia caído em depressão, com tentativas de suicídio. Perdeu a clínica com as dívidas do jogo e gastos com o hospital. Nenhum familiar queria saber dele. Estava a ponto de virar mendigo.
Ajudei-o a sair do táxi. Um enfermeiro veio buscá-lo. Na porta, voltou-se e abanou. Embora estivesse distante para ouvir o que dizia, li em seus lábios um obrigado.
Entrei no carro e rumei para casa. Era sábado. Reuni a família e fomos passear.
Saí às cinco horas de casa. A noite toda chovera. Mas agora cessara, embora o céu ainda permanecesse carregado. Meu primeiro freguês aguardava-me na porta de um hotel de quinta categoria. Ajudei-o a entrar no táxi e coloquei a cadeira de rodas no porta-malas. Queria me queixar da sorte, da noite mal-dormida, do perigo que é dirigir em Porto Alegre, do pouco ganho no dia, do tempo que ficava ausente de casa, que não via nem meus filhos; de ter feito faculdade e enterrar meus conhecimentos atrás de um volante, e outras queixas mais. Mas parei, quando o homem terminou a história. Sou um sujeito de sorte, concluí,
Arranquei o veículo e não fiz qualquer comentário. Nem mesmo sobre o tempo, a chuva. É costume proceder assim. Espero que o freguês fale. Se não fizer, também calo. O freguês é quem manda. E hoje também fiquei calado, mas de boca aberta, queixo caído. Tanta desgraça num homem só nem dá pra acreditar. Mas o infeliz trazia estampado no rosto, em cada traço, a marca do sofrimento.
Quando chegamos à porta do hospital, desliguei o taxímetro. A história ainda andava lá pelo meio, se bem entendi. Gosto de dinheiro, é claro, e preciso dele para sobreviver, para sustentar a família, mas no momento achei que poderia dispensá-lo. O homem estava arrasado, explodindo. As lágrimas pingando no banco. E eu nem podia reclamar. Somente ouvir.
Era o único filho de um casal de empresários. Tinha tudo. Antes de pedir, os pais já estavam satisfazendo-lhe os desejos. Especializou-se em neurocirurgia nos Estados Unidos. Carreira promissora, sucesso. Era vaidoso, inflexível, mulherengo. Apaixonou-se pela filha do diretor-médico do hospital e com ela casou-se. Por ocasião do parto do primeiro filho, a mãe e a criança morreram. Ficou desesperado. Mas o amor pela profissão fez com que logo se recuperasse.
Pouco depois, voltou a casar. Na primeira gravidez, teve um medo descontrolado de que o mesmo acontecesse. Mas tudo correu bem. No parto seguinte, nasceram gêmeos. Enquanto as crianças cresciam, voltou às mulheres, misturando com doses altas de bebidas. Mesmo assim, era perfeito nas cirurgias. Seu nome tinha fama internacional. Montou uma clínica, com a ajuda dos pais.
Tudo parecia perfeito. Somente parecia. Os pais foram à falência. Não suportando a perda, deram fim à vida. Logo descobriu que o filho mais velho era hemofílico. Mais tarde, o mais terrível: o rapaz contraiu aids e morreu. Em meio à dor e ao sofrimento, descobriu-se diabético. Já não tinha o mesmo sucesso nas cirurgias, cometeu erros. Um processo terminou por abalar definitivamente a carreira. Precisou voltar à terra natal.
A clínica também não prosperava, ao contrário, tudo ia à derrocada. Seu nome era sinal de alerta. A clientela diminuindo. Uma noite, viajou com os gêmeos e a mulher para um fim-de-semana na serra. Precisava descansar, pensar em como resolver os tantos problemas em que se via envolvido. Foi para o cassino. Perdeu e bebeu até não mais saber quem era. Sem se recuperar bem do porre, dirigiu de volta para casa. Agora, além de a cabeça não estar clara, a situação ia de mal a pior. No carro, gritou com a mulher, xingou os filhos, fez ameaças. A vida pregara-lhe uma peça. Estava ficando pobre, sem prestígio, perdendo a profissão e ainda esta família chata vem lhe cobrar postura, bons modos. Será que não entendem? Sente-se enlouquecer, com o mundo virando de cabeça para baixo. Que se calem. Não quero mais ouvir nem uma voz. Basta.
Quando abre os olhos, está tudo nublado. Pergunta: quem está aí, onde estou, o que aconteceu? E ninguém responde. Tenta levantar, mas está preso a fios. Reúne as forças e grita. Logo, pessoas estão rodeando-o. Um médico cumprimenta-o, alegre, dando os parabéns por ter finalmente despertado. Pede que fique calmo, que está tudo bem, que esteve em coma por um mês, mas que tudo está sob controle, que está reagindo de modo satisfatório.
Aos poucos, vai-se inteirando do ocorrido. O carro caiu num precipício. Todos morreram. Ele tinha sofrido uma contusão cerebral, havia perdido um olho e uma perna.
A única coisa que recordava era de estar viajando de volta para a cidade. Somente mais tarde é que se lembrou da briga com a família. Nunca conseguiu descobrir como foi o acidente. Ficou ainda mais um mês no hospital. Embora já estivesse recuperado, havia caído em depressão, com tentativas de suicídio. Perdeu a clínica com as dívidas do jogo e gastos com o hospital. Nenhum familiar queria saber dele. Estava a ponto de virar mendigo.
Ajudei-o a sair do táxi. Um enfermeiro veio buscá-lo. Na porta, voltou-se e abanou. Embora estivesse distante para ouvir o que dizia, li em seus lábios um obrigado.
Entrei no carro e rumei para casa. Era sábado. Reuni a família e fomos passear.