MECÂNICA LOBEIRA
MECÂNICA LOBEIRA
As lâmpadas da avenida já se haviam acendido. A tarde estava deixando a cidade e a noite vinha chegando, meio ressabiada... Algumas estrelas ensaiavam o bruxuleio e a lua ia aparecendo atrás do “Morro da Baleia” estendendo um lençol prateado sobre as plantações do Cerrado.
Os mecânicos e demais empregados da oficina estavam no alarido comum de final de expediente e saíam, junto com o vozerio, deixando para trás o portão escancarado.
Era sexta-feira, prenúncio de baladas e zoações. Na Rádio Comunitária, “Kalunga” se esgoelava nos anúncios do baile “funk” do sábado, quando a Tati Quebra Barraco, em pessoa, viria cuidar da animação. Ia ser um baile pesadão, com tudo o que se tem de direito... A mulherada andava inquieta e a rapaziada mais inquieta, ainda... Afinal, não era todo o dia que o Clube apresentaria uma “celebridade” como a Tati. Um barato! Um barato, mesmo! “Um sonzaaaaaaaaaço! Dizia o locutor...
No ar, um cheiro de acetileno misturado com emanações de óleo e pedaços de estopa embebida em gasolina para a limpeza de peças. A oficina era de um visual devastador. Peças e ferramentas espalhadas por todo o canto, sujeira pelo chão, paredes sujas de graxa e, no meio disso tudo, retratos de estrelas pornô, ladeadas por várias vencedoras do “BBB”, todas lindas, nuas, depiladas e sorridentes.
Uéliton, o dono da “MECÂNICA LOBEIRA”, era um autêntico filho do cerrado goiano e, desde menino, andava saltitando e brincando com restos automotivos num “ferro velho” que o pai mantinha, no interior do estado, numa região de pequenas fazendas e comércio incipiente.
Em homenagem à região onde fora nascido e criado, cuja vegetação era pródiga em um arbusto de nome “lobeira”, Uéliton batizara o empreendimento comercial com o nome do vegetal.
Lobeira é uma planta de pequeno porte, de ocorrência no Cerrado e na Mata Atlântica, de nome científico “solanum lycocarpum”. Recebeu esse nome por ser um dos alimentos mais apreciados pelos lobos que abundam na região. Já no tempo dos desbravadores erra chamada assim. Corria uma lenda, mantida pela gente antiga, que a lobeira era venenosa. Assim, ninguém tocava nos frutos que, dizem, eram apreciados pelos lobos-guará. Daí, o nome.
Hoje, com os avanços da farmacopéia fitoterápica, sabemos que dessa fruta se extrai um fármaco excelente para o combate à glicemia e pode ser encontrada em farmácias ligadas à medicina alternativa. Eu mesmo estou tomando o medicamento e meus índices glicêmicos estão baixando a olhos vistos. Meu acupunturista já me safou de boas e, às vistas dos exames indicou a lobeira (Solanum grandiflorum). A título de informação, o medicamento, além do combate à hiperglicemia (diabetes), também ataca o colesterol e auxilia no emagrecimento.
Com metade do corpo enfiado sob o capô de um velho “Maverick”, Uéliton procurava apertar os parafusos do gerador que havia recebido uma correia nova.
Faltava pouco e logo em seguida fecharia a loja, pois havia prometido entregar o carro ao seu dono, pela manhãzinha, no dia seguinte, e não queria desapontar o cliente, um sujeito pra lá de mal educado, dono de uma carvoaria, com fama de maus bofes.
Ao lado da oficina, morava uma velha que, desde que enviuvara, nunca mais arranjou marido ou um homem que lhe fizesse algum agrado mais atrevido. Assim, resolveu viver rodeada de gatos. Com ela moravam, confortavelmente, trinta e dois felinos, dois papagaios e um cágado cego de um olho.
Não bastasse isso, a velha era muito mal educada. Não se relacionava com ninguém, na vizinhança, e era língua solta para xingar palavrões. As evangélicas diziam, à boca pequena, que era bruxa ou feiticeira e que tinha partes com o capeta.
Para complicar mais a questão, a fisionomia dava margem a essa desconfiança, pois a velha tinha um nariz adunco ostentando uma sonora verruga, com alguns pelos se projetando para o espaço. Usava bengala com castão de cobre azinhavrado e um capuz ensebado a guisa de touca.
Tudo ali cheirava mal! Era um cheiro mortiço, de titica de gato, que empesteava a oficina e a metade da rua. Nem creolina brava dava jeito naquilo! Os bichanos se refestelavam em todos os cantos da residência e alguns tinham o privilégio de dormir na cama com a dona. Durante o dia, alguns se aboletavam por lá e aquela paz felina só era perturbada pela ação incessante das pulgas que infestavam todo o ambiente.
Nada disso incomodava a mulher que se gabava de que, em toda a vizinhança, a única residência que não tinha ratos era a dela, pois seus amiguinhos cuidavam para que os roedores dessem o fora daquele lugar letal para eles.
A gataria enlouquecia os moradores quando a lua entrava em quarto minguante e as bichanas entravam no cio. Vinham gatos de outros quarteirões e, na primeira bobeada dos gatos locais, davam o bote e “creu”! A confusão pulava de telhado em telhado numa verdadeira festa “Fora da Lei”, como na canção do Ed Motta.
Depois que Uéliton trancou o portão da oficina passou uma estopa nas mãos engraxadas e tratou de ir tomar seu banho para o merecido prato de janta, prenúncio do merecido sono.
Acostumado que estava, com a miação permanente na área, sequer percebeu que uma gata de bom tamanho resolvera parir sua ninhada bem no banco traseiro do “Maverick”.
Catão, o dono do carro, havia arrumado um caso lá pras bandas de Formosa. Havia articulado um esquema querendo fazer visagem. Pretendia levar a mulher para dar umas voltas até a Lagoa Feia. Lá, comeriam uns peixinhos fritos, tomariam umas cervejas e, depois, terminariam o dia num motel barato por ali mesmo... Achava isso, um belo engodo. A mulher, segundo seus cálculos, “estava no papo”. Era só questão de horas... Já fazia algum tempo que o marido escapulira e, na fantasia de Catão, havia de estar “subindo pelas paredes”...
Pensando assim foi que resolveu levar o automóvel à oficina para substituir a correia do gerador que, de velha e desgastada, estava soltando os fios e a ponto de arrebentar. Não podia, de jeito nenhum, pagar tal vexame diante da conquista em andamento.
No dia seguinte madrugou na porta da “MECÂNICA LOBEIRA”, ansioso de levar para casa a “arma do crime”, fazendo mil planos para o esperado encontro.
Mal abriu o portão, antes mesmo de entrarem os funcionários, Catão foi se adiantando e disparou em direção ao carro, ainda com o capô escancarado. Olhou, examinou, escarafunchou o quanto pode e, feliz, deu-se por satisfeito, preparando-se para pagar a conta.
Quando abriu a porta para sentar-se ao volante e dar a partida sentiu um bafo estranho, nauseabundo. Percebendo que aquela morrinha parecia vir do banco traseiro, virou-se para conferir...
Não teve tempo de pensar em nada. A gata parida, em proteção à ninhada de oito filhotes, deu um pulo do banco traseiro, em que se acomodara, e caiu de unhas e dentes na cabeça e no rosto do azarado Catão. O homenzarrão berrava feito criança desmamada!
Com muito custo conseguiu pular para fora do carro, tropeçando no cabo de um macaco que suspendia o eixo de uma caminhonete. Escorregou numa poça de óleo que vazara de um diferencial rachado e, juntamente com a caminhonete, desabou o corpanzil com um ruído abafado...
O susto pegou todo mundo de surpresa. Ninguém tinha coragem de chegar perto do animal que estava com os dentes e unhas cravados no couro cabeludo do homem que se debatia sangrando e quase cego de dor.
Aquela barulheira infernal chegou até aos ouvidos aguçados da velha Gertrudes que conhecia, profundamente, o miado de cada um dos seus gatos.
Ouvindo a gritaria da “Ximbica”, partiu para a oficina vociferando impropérios atingindo até a mais remota geração do pobre Uéliton. Possessa, brandindo a bengala nodosa, atravessou o portão, oficina a dentro, olhos esbugalhados, com as veias das têmporas a ponto de estourar.
Ao deparar com aquela cena e vendo a ninhada desprotegida, no interior do veículo, passou a desferir bengaladas nas costas de Catão que não sabia se procurava se desvencilhar da gata, da velha bruxa ou do óleo com serragem que lhe emporcalhava o trazeiro e as costas...
Ninguém sabe direito se foi bruxaria, parte com o diabo, ou coisa que o valha. O fato é que, no meio daquela encrenca federal, os outros trinta e um gatos e gatas vieram acudir a dona e a parenta; todos com os pelos eriçados, mostrando unhas e dentes.
Em socorro à D.Gertrudes, um maçom, proprietário de uma loja de produtos agropecuários, veio tomar satisfações em favor da velha que era das melhores clientes. Pagava, por mês, uma bela conta em ração e medicamentos para gatos. Era aparentado com gente originária da Síria, lá das bandas de Mine, cidade próxima de Trípole.
Um vizinho incógnito chamou a polícia que apareceu munida de “spray’ de pimenta e de cães pastores. Foi uma tragédia! Como os cães nunca tiveram treinamento para confronto com gatos, a confusão generalizou-se e os policiais perderam o controle sobre os amimais que partiram para cima dos gatos, sem dó nem piedade.
Com muito custo e com muito spray de pimenta, cães, gatos, Catão, Uéliton, a velha Gertrudes, os funcionários, todos, sem exceção, tiveram que abandonar a refrega para cuidar dos olhos que, nessa altura dos acontecimentos, ardiam pra valer.
Cadê a pia? Onde fica o tanque? Água! Água! Água!!!
O sargento comandante da patrulha policial, nessa altura dos acontecimentos, já meio perdido, pois os regulamentos militares não tinham nenhuma instrução de como controlar esse tipo de confronto, acabou enquadrando Uéliton por não manter fechados os vidros do carro impedindo que a gata se aboletasse para ter seus filhotes. A acusação era a de “perturbação da ordem pública”.
Catão, com a cara toda arranhada e já sem coragem de tocar para a frente o tal encontro em Formosa, queria saber quem é que iria limpar aquela sujeira no banco do seu carro? Com cara de vítima, pensando no “prejuízo”, inquiriu o sargento:
-- E aí, chefia? Como é que fica a limpeza do meu carro? É o dono da oficina ou a velha, dona da gata?
--Bem! Isso aí já não é comigo! Esse é um assunto para o delegado! “Boletim de Ocorrência”, abertura de processo, decisão judicial e os cambaus! Acho que o senhor deve procurar um advogado! Todos terão que ir ao Distrito para a lavratura do “Flagrante’! A gata, por estar no puerpério , pode ficar!
-- Mas, se tivessem fechado os vidros, isso não aconteceria! Né? Disse Catão.
Uéliton que, até então, se mantivera calado, procurou se defender:
-- É! Mas se a vizinha tivesse mantido os seus gatos dentro de casa, não haveria necessidade de fechar os vidros e a gata não viria parir no banco do carro dele, sargento!
-- Não posso prender meus gatos! Se eu fizer isso, logo o pessoal da Sociedade Protetora dos Animais, que fica bem ali no número 325, vai me acusar de maus tratos e querer complicar a minha vida!
O quiproquó estava nesse pé, quando, de repente, quatro viaturas pararam em frente ao portão da oficina. A vizinhança curiosa já havia se transformado em uma pequena multidão e as pessoas estavam ali, tecendo os mais absurdos comentários, dizendo que até o bispo de Formosa estava sendo chamado para ajudar a solucionar a contenda.
Foi aí que uma das viaturas, com três alto-falantes no teto, começou a berrar em defesa dos animais e do constrangimento a que estavam sendo submetidos, por pessoas insensíveis e desprovidas de consciência ambiental. Eram políticos e militantes de um partido ambientalista.
As pessoas foram se aproximando e, de repente, o tema da refrega fora transferido para os alto-falantes. Aproveitando o ajuntamento de curiosos, políticos ambientalistas e candidatos a cargos eletivos se revezavam na oratória, em plena campanha eleitoral, garantindo que, se eleitos, a primeira providência seria em função do meio ambiente e que Dona Gertrudes e todos os que cuidassem de animais domésticos ganhariam “bolsas famílias ambientais”.
Como a maior parte dos ouvintes possuía algum animalzinho doméstico, alguém da Sociedade Protetora apareceu, com uma folha de papel almaço pautado, colhendo assinaturas e os números dos títulos eleitorais dos integrantes daquela multidão que, naquele instante, se haviam transformado em “eleitores ambientais”... “A mosca estava caidinha no mel”, bem ali, pertinho!...
Dona Gertrudes foi aclamada “Mãe Protetora” e incumbida de instalar um diretório especial na rua, que levaria o nome do inventor do Jogo do Bicho, “Rua Barão de Drumond”.
Padre Nemésio não perdeu a oportunidade de dar o “pitaquinho” dele, abrindo sermão em defesa de S.Francisco de Assis. Esse, sim! Era o verdadeiro amigo dos animais! Os pombos até pousavam no ombro dele e comiam milho em suas mãos!...
No meio daquela confusão, a brisa da manhã ia enfiando pelas narinas do povaréu adentro, o cheirinho gostoso do indefectível churrasquinho. Zelindo, um negão de cabelos brancos que tocava um terreiro ali perto, de dia vendia churrasquinhos na esquina do armazém e, à noite, sentado num toquinho, entre umas cachimbadas e umas goladas de “marafo”, recebia “Pai Joaquim de Aruanda. Era o conselheiro de uma penca de fiéis cuja freqüência era maior do que a da psicóloga, cujo consultório ficava apenas a quatro casas de distância.
Esperto, percebendo a possibilidade de “faturar algum”, Zelindo tratou de montar sua churrasqueirinha no meio-fio, bem pertinho da oficina de Uéliton!
Um cara metido a gaiato quis fazer piada em hora errada e acabou levando uns cascudos do pessoal que se lambuzava na gordura do churrasquinho. O cara foi fazer piada dizendo que aquilo era “churrasquinho de gato”! Levou um “pau” e tratou de “cascar fora” logo que viu o caminho da fuga...
Enquanto os ambientalistas se acertavam com o povaréu, o sargento, muito esperto, chamou os seus soldados num canto, e cochichou alguma coisa no ouvido deles.
Vendo que os litigantes estavam distraídos com as promessas do ativismo ambiental, o sargento e sua equipe foram saindo de fininho... Depois que dobraram a esquina abriram a sirene da viatura e partiram para o Quartel da Compahia. Foram pro Rancho comer um “engasga gato”... Afinal, ninguém é de ferro nesse mundão de Deus!
A velha, recolhendo “Ximbica” e sua ninhada, levou-os para o lar-doce-lar que a providência lhes reservara, feliz da vida, chamando os recém nascidos de “nenenzinhos da mamãe”...
A paz voltou a reinar e o ruído do esmeril, desbastando um pedaço de metal, se impôs na “MECÂNICA LOBEIRA”... Catão foi procurar o Laurindo, da farmácia, para arranjar um vidro de mercurocromo... Desistira de ir comer a gata de Formosa.
Anunnak – 06-07-2005