A grande ilusão humana…
Conto baseado no mini-conto “ Julgaram que o vosso mundo, as vossas vidas eram seguras…?”
(Versão alargada)
“The Party constantly watches all citizens for any sign of rebellion or thought-crime, but tries to appear kind and concerned rather than ruthless and invasive. It adopts the protective, reassuring persona of 'Big Brother' and the slogan: BIG BROTHER IS WATCHING YOU
Surveillance of the proles is limited. The Thought Police track down and eliminate the few proles who seem capable of becoming dangerous to the Party.
1984
George Orwell
“Crónica de tempos futuros”
Auclair
Durante um breve lapso de tempo a humanidade viveu numa relativa liberdade, viveu num sistema equitativo onde a riqueza era distribuída por todos os seus cidadãos de uma forma que poderíamos considerar justa e equilibrada, um sistema onde os mais desprotegidos dispunham do amparo do estado.
Foi o tempo das democracias modernas, mas um tempo que se esgotou demasiado depressa.
As democracias foram uma breve excepção de igualdade num sistema de organização humano que sempre se caracterizou por ser desigual, pelo explorar das populações por parte das suas elites, que era suposto as representar, que era suposto velar pelos seus interesses mas que na prática sempre viveram à custa dessas populações…
Mas sim, existiu um tempo onde uma parte significativa da população humana viveu segura e próspera, bem longe dos tempos de miséria e de guerra que sempre foram o padrão da humanidade…
Mas esse tempo passou há muito, e nestes dias vivemos o padrão que sempre caracterizou a nossa espécie…
O que se passou então para tudo ter mudado…?
Porventura nada mudou, esse período que durou umas escassas décadas acabou por ser uma mera excepção na regra da civilização, da socialização humana, décadas de ilusão porque de facto tudo não passou de uma ilusão, de uma espécie de sonho onde nos mergulharam e onde ainda quase todos estão…
Mas para lá desse sonho há uma realidade que só alguns conseguem ver, e esses ou acreditam no sonho (sabendo que este é uma falácia) e se conformam, ou pura e simplesmente resistem e tentam lutar tornando-se assim desalinhados contra um sistema que os irá vencer, por muito que eles recusem a rendição…
Tudo seria diferente se a humanidade despertasse em conjunto, pois ai seria toda a humanidade a resistir e consequentemente a vencer, porque nas raras vezes em que um povo ou os povos se uniram saíram sempre vencedores perante o seu opressor…
Mas sou realista e tenho a noção de que tal ou é impossível ou de difícil concretização porque nem todos podem acordar como eu fui acordado, porque me considero ao mesmo tempo um privilegiado e um amaldiçoado pela maneira como fui acordado…:
Nascido numa família que não se distinguia das demais famílias, tendo amigos como todos têm, tudo à minha volta vivia no sonho, na ilusão, até que um dia conheci um tio-avô que a família excluíra e vetara ao ostracismo pela simples razão de, sendo a pessoa que mais se destacara pelo importante cargo que alcançara, um dia, repentinamente, deixou tudo para trás e renunciou a viver em sociedade, partindo em viagem que durava há anos.
Sentindo que o seu fim se aproximava, decidiu voltar para morrer entre os seus, mas os seus não o acolheram, excepto eu, que desconhecendo a razão do seu exílio, quando este apareceu em minha casa não vi motivos para não o acolher.
Pensava durar alguns meses, mas, apesar de se notar o seu declínio a cada dia que passava, ele lá foi resistindo.
Passava os seus dias a olhar, em silêncio, pela janela através da qual via a grande praça da cidade onde se situavam os Ministérios nos quais se governava o meu país.
Reparei que o seu olhar não era neutro, que era um olhar misteriosamente desafiador, mas não me atrevi a inquiri-lo.
Até que, quando passavam dois anos sobre a sua chegada, um dia repentinamente, ele decidiu falar:
Em tempos há muito idos ele fizera parte dos Ministérios que olhava agora com ar de desafio. Em tempos ele fizera parte de uma estrutura que governava o mundo, e da qual os Ministérios eram uma parte menor, a parte executora das decisões que a estrutura delineava.
Aluno brilhante na universidade dera nas vistas e fora convidado a fazer um estágio num departamento governamental. Tendo passado com distinção no estágio, convidaram-no para outro de nível mais elevado, e a seguir a outro. Ao fim de um ano com o mesmos resultados brilhantes, por fim ele foi convidado a trabalhar num projecto sigiloso, onde, descobriu mais tarde, Tudo decidia.
O Tudo não era referente meramente ao seu país, o Tudo era relativo à escala global…
Inteligente, entusiasta, empreendedor, activo, leal, rapidamente ascendeu na hierarquia, e estava destinado a chegar ao topo desta não tivesse, a meio caminho da ascensão, entrado em ruptura com essa estrutura quando percebeu a génese desta. Outros como ele percebem-na e adoptaram os princípios dela aos seus, ao ponto de esquecerem os seus, mas ele não.
Sabendo perfeitamente que a dissensão lhe poderia custar a vida, limitou-se a pedir a demissão, alegando não estar à altura das responsabilidades do seu trabalho.
Ele conhecia demasiado bem o serviço ao ponto de saber que sairia dele com vida, e por isso esperou desde então ser eliminado, mas por estranho que pareça deixaram-no ir em paz, se bem que em breve descobriu nunca mais ir viver em paz devido ao facto de ter passado a saber que todo o seu mundo, tudo o que lhe tinham ensinado desde o berço era uma mera ilusão, que a realidade era algo tão diferente que não poderia viver nela, pois sentia que de outra forma estaria a pactuar com ela.
E assim decidiu nunca ter um lar, decidiu passar a sua vida a viajar, pois se ficasse mais do que alguns dias num local, por muito belo e atraente que este fosse, tal lhe soaria sempre a falso.
Viajar de forma incessante permitia-lhe aliviar esta sensação.
A herança dos pais e investimentos bem feitos possibilitaram que assim pudesse viver.
Mas no fim da vida percebera que falhara pela simples razão de ter ficado calado, de nada ter feito contra aquilo que o revoltara.
E foi então que falou, falou de Tudo.
Um homem que sabia Tudo revelou Tudo, enquanto eu o ouvia e, a seu pedido, acabei por fazer uma súmula do que me revelara.
Depois calou-se e nunca mais voltou a falar, sentindo que era parte do que criticara porque não fizera nada contra tal a não ser ficar em silêncio.
Eu ficara esmagado com o que soubera, tão esmagado que, tal como ele, optei por ficar em silêncio, tanto pelo que ficara a saber, como por medo do que sabia.
Mas quando ele morreu decidi agir, decidi divulgar o que sabia, lançando tal na grande rede que também é controlada por eles, sabendo que tal irá ser ou ignorado ou desmentido das mais diversas maneiras, irá ser desacreditado a um ponto tal que as linhas que se seguem serão apenas algumas linhas “dissolvidas” nas infinitas linhas da grande rede.
Não sei o que se passará de seguida comigo, não sei se irei ser ignorado ou se passarei a ter a importância de me perseguirem e me liquidarem, mas não preferindo arriscar nada irei desaparecer, irei diluir-me entre a humanidade, mudando constantemente quer de morada quer de identidade, pois depois de lerem o que se segue eles saberão de onde veio tal, saberão quem eu sou…
Por isso passarei a não ser nada, não esperando nada, a não ser que alguém leia o que se segue e transmita tal, de uma tal forma que estas linhas sejam reproduzidas a uma tal escala que possam vir a mudar algo, pois o nosso futuro como seres livres depende dessa mudança…
A opção fica pois nas mãos de quem ler…
“Julgaram que o vosso mundo, as vossas vidas eram seguras…?
Mera ilusão…nós fabricámos essa ilusão…
Durante centenas de anos o direito divino, o poder de Deus, fora a nós confiado para tomarmos conta dos vossos destinos, e em nome dele administrámos os nossos interesses usando-vos nesse sentido, embora sempre afirmássemos que usávamos esse poder para o bem de todos…
Quando surgiram as democracias modernas tivemos que inventar uma ameaça externa a essas democracias, ao mesmo tempo que vos assegurávamos que só nós vos poderíamos livrar desse mal.
O comunismo foi esse mal, e aceitaram que vos vigiássemos de maneira a evitar que o inimigo se infiltrasse, ao mesmo tempo que nos deram verbas ilimitadas dos vossos impostos que gastámos em arsenais que vos deveriam proteger da ameaça.
E assim ao mesmo tempo que vos vigiávamos também enriquecíamos porque as empresas que fabricavam armas eram uma parte de nós, um entre tantos braços que possuíamos…
Foi então que o comunismo acabou, o que nos obrigou a criar uma nova ameaça.
Alguns bandidos do médio oriente que se matavam entre si desde quase sempre serviram-nos de pretexto.
Empolámos essa ameaça com pequenos e residuais ataques às nossas cidades, devidamente ampliados em termos mediáticos de tal forma que se instalou uma enorme sensação de insegurança e de medo que seria resolvida por nós, se nos permitissem vigiar esse inimigo que se escondia nas nossas nações, entre nós, invisíveis, que tinham que serem detectados e neutralizados, sacrificando parte das liberdades individuais dos cidadãos de forma a ter controlado esse inimigo.
E tudo correu bem, muitíssimo bem…
As constituições foram alteradas, as liberdades diminuídas, e os arsenais voltaram a estarem bem fornecidos, porque além de controlarmos o inimigo teríamos que o combater no local onde estava sediado…
A ilusão foi tão perfeita que pouca gente reparou que se a ameaça fosse real teriam sido algumas armas atómicas (roubadas aos arsenais comunistas indefesos perante a desagregação do império vermelho) a rebentarem nas nossas cidades e não meras bombas convencionais que tiveram um impacto real nas vossas mentes e nos mass media e não nas cidades…
O controlo passou a ser tão comum, tão banalizado que nem deram por ele a determinada altura…
E assim os dados pessoais que inserem nas redes sociais virtuais, os GPS presentes quer nos vossos carros, quer nos vossos telemóveis, as câmaras que proliferam um pouco por todo o lado, as câmaras dos telemóveis, a todos esse dados temos livre acesso, sem que dêem por isso, temos assim o CONTROLO TOTAL E ABSOLUTO sobre todos vós, e o melhor disto tudo é que são vocês a fornecerem-nos esses dados de livre e espontânea vontade…
Atingimos pois a maneira perfeita de controle, porque são os controlados que nos dizem tudo, tudo, sem que praticamente tenhamos que fazer nada nesse sentido…
Mas precisávamos de algo mais, a ameaça terrorista não era suficiente para o nível de controle que ambicionávamos, precisávamos que tivessem medo de maneira permanente, medo pelo presente e pelo futuro, precisávamos que se sentissem inseguros, de tal ordem fragilizados ao ponto de não pensarem em absolutamente mais nada…
E ao darmos origem a cíclicas e devastadoras crises económicas e financeiras tornamos-vos permanentemente inseguros, porque a vossa preocupação passou por ser garantir o vossos sustento, não durante décadas mas durante meses, poucos anos no máximo, ao mesmo tempo que empobreciam a olhos vistos e que nós e os nossos enriquecíamos com a vossa miséria…
No entanto dizíamos sempre que as coisas iriam piorar se ninguém interviesse.
E quem vos poderia salvar?
Nós…
Foi o mesmo que dar a guarda de um rebanho a um lobo…porque nos deram ainda mais poderes que usámos para aumentar ainda mais a dimensão deste jogo viciado onde só nós ganhamos…
Dispúnhamos então de uma enorme quantidade de dados vossos, literalmente toda a vossa vida era do nosso conhecimento, e com esses dados que nos permitiram conhecer a fundo quem vigiávamos, passámos a moldar-vos de maneira a melhor vos manipular, tudo isto com o intuito de que nunca colocassem em causa esta ordem, a ordem do rebanho onde iriam e fariam o que bem entenderíamos, em que o livre arbítrio era apenas mais uma bela frase que fora esvaziada do seu significado porque o homem deixara de mandar em si próprio, o homem passou a ser totalmente condicionado, todas a suas escolhas pré-determinadas embora tivesse a ilusão contrária…
E assim os programas de entretenimento, os filmes, os livros, os jornais, as revistas passaram a terem conteúdos que sem dúvida vos agradavam, mas dos quais estavam afastados a crítica a este sistema, que estava afastada a critica racional, pois esta poderia-vos levar a pensar em que algo estava errado, e mesmo uma pequena ideia poderia dar lugar a mais ideias e de repente Tudo poderia ser colocado em causa…
Mesmo o que consumiam, todos os bens de consumo, eram pensados antes por nós, porque o controle também deveria ser feito a este nível, porque o controle deve ser exercido em todos os níveis da actividade humana…
Para vos dar uma (naturalmente falsa…) sensação de liberdade chegámos a criar discussões, a gerar manifestações onde se colocava em causa parte desta ordem mundial, e assim surgiam manifestações, episódicas revoltas, que serviam para a catarse das massas quando estas se encontravam exaustas ou à beira da implosão social, quando estas sentiam necessidade de mudar o que consideravam que as prejudicava, mas depois tudo voltava ao normal, os assuntos prementes eram esquecidos, abafados por outros menos prementes mas que conseguíamos tornar relevantes através da massificação desse assuntos e da minimização dos outros, em mais um exercício de manipulação escondido…
O nosso sistema era bom, mas não era perfeito, existia sempre o perigo de fugas de informação por parte de elementos nossos que começavam a pensar e que davam consigo a discordar, elementos que denunciavam tudo isto. Mas tudo isto era um tal absurdo que esses elementos passavam por serem alienados com ideias alienadas, o que reforçávamos com campanhas públicas onde se assassinava o carácter dos denunciantes, onde se desacreditavam essas pessoas, que poderiam ter uma vida acima de qualquer suspeita, uma vida que passava a ser questionável através de factos por nós inventados e que pela força das nossas campanhas de contra-informação passavam a ser as verdades que toda a gente aceitava…
E claro que quem questionava os denunciantes, o que os movia, não éramos nós, eram “personalidades independentes” acima de qualquer suspeita (e que por isso dispunham de uma enorme aceitação pública” e que nos eram secretamente afectas ou que eram manipuladas por nós…)
“Uma mentira repetida mil vezes transforma-se numa verdade”…
Uma velha frase que tornámos banal, porque já nada é o que parece, tudo parece o que queremos que pareça, desde que sirva os nossos interesses, sendo irrelevante que quem a defenda seja obliterado por um sistema que vê na verdade, na razão, na justiça um elemento letal à sua continuidade…
O poder absoluto não consiste em ter dinheiro ou bens materiais, o poder absoluto consiste em controlar e condicionar livremente a vida de milhões, muitos milhões de seres humanos, consiste em saber que, em meses uma nação rica pode mergulhar na mais absoluta miséria apenas e tão somente porque queremos e podemos fazer tal, consiste em manipular a realidade, e a própria história do mundo à medida das necessidades de quem possui esse poder…
Este é o tipo de poder que nem os deuses possuem, porque estes podem criar e destruir mundos, mas não possuem o poder de levar milhões a fazerem exactamente o que queremos e ainda nos agradecerem tal…
Julgaram que o vosso mundo, as vossas vidas eram seguras…?
Só estarão realmente seguros quando pedirem à vossa classe política, aos vossos representantes que governe defendendo os vossos interesses e não os interesses deles e dos seus, algo de impossível porque nós controlamos os vossos dirigentes, aos quais damos umas migalhas do nosso poder para lhes dar uma sensação de falso controlo…
Só estarão realmente seguros quando recusarem este controle, inquirindo as razões desse controle e não o aceitando como algo lógico e natural, porque ele pode ser imensas coisas, menos lógico e natural…
Até esse dia chegar, até ao dia em que começarem a questionar, a resistir, a não se deixarem intimidar viverão a grande ilusão humana, viverão na mais absoluta insegurança e estarão sobre o nosso mais absoluto controlo…”