SE CORRER O BICHO PEGA SE FICAR O BICHO COME

As impossibilidades sempre constrangem e machucam

Pedro, como filho mais velho, além de dois rapazes e três meninas, sentia-se responsável pela família, por sua mãe e irmãos, diante do temperamento altamente espinhoso de seu pai. Pensava sair de casa para buscar melhores condições, com um melhor emprego...

Decidiu que removeria qualquer entrave para conseguir o seu intento.

Mas foi só decidir isso e as primeiras pedras apareceram... na vesícula de sua tia que dependia dele e da mãe.

Adiada a partida, até que a cirurgia fosse feita.

Quando já se preparava para seguir, viu -se muito embaraçado com a visita de um homem que veio cobrar-lhe dívidas de seu pai ausente.

Teve que acertar, resolver tudo, para que sua mãe e sua tia não fossem importunadas durante o seu afastamento.

E assim iam se sucedendo os obstáculos que ele ia transpondo enquanto atrasava seus planos.

Quando criança, a vida em casa era muito agitada e de muitas privações. O pai encarava a vida de um modo irresponsável e displicente, pois em nada se esforçava para alimentar os que dele precisavam. E ainda era briguento. Além da falta material, aquele comportamento provocava nos filhos medo e distanciamento psicológico, com o consequente desequilíbrio na família.

Quantas vezes chegando do colégio, Pedro e o irmão mais novo, depois de andarem uma grande distância a pé, doidos por um almoço, encontravam as panelas vazias!

Quantas vezes o pai , além de não prover a casa, ainda promovia brigas e mandava um irmão pegar o outro pra que ele surrasse! E isso por qualquer motivo menor. Se o garoto não trouxesse, era ele quem apanhava. Não conseguindo castigar qualquer dos meninos, ele mesmo caía tremendo todo, só de raiva. E precisava extravasar seu aborrecimento sem ser perturbado ou contestado. Ficava no chão até que se lhe apresentasse um em quem ele dar as pancadas.

Faltava-lhe o senso de equilíbrio para gerir uma família . Era enredado pelo próprio temperamento difícil e belicoso. A ponto de aparecer na cidade um sujeito incumbido de acabar com ele, isto é, matar mesmo. Soube disso meses depois, quando o indivíduo lhe confessou que não tinha conseguido consumar o intento por medo de falhar e resolveu que era melhor se tornar amigo dele. É como diz o ditado popular: “Dois cavalos ruins pastam juntos.”

Humilhava os filhos. Não sabia ao menos, dizer-lhes uma palavra de estímulo. Extremamente egoísta, só se importava com os próprios interesses, ou seja, mulheres, jogatinas, negociatas.

Quantas vezes os filhos já adolescentes pensaram em abandonar tudo! Pensavam que qualquer modo de vida a enfrentar, seria melhor que aquele. Era certo que dessem com alguns outros tipos de amarras e embaraços, dos quais teriam que se desvencilhar; mas ao menos não era um sofrimento imposto por um pai irascível e inconsciente.

A verdade é que estavam presos. Como deixar a mãe à mercê de um marido assim?

Era tal o pesadelo, que os rapazes sabiam que se estivessem longe de casa, iriam ficar inquietos sem saber o que poderia estar acontecendo por lá.

Chegou, entretanto, o dia em que tudo ficara sobre os ombros de Pedro. Não conseguira segurar os irmãos, que saíram à procura de seus destinos. Resolveram que iriam de qualquer jeito. Não suportavam mais aquela forma de opressão. Temiam enlouquecer com tanta violência e despotismo por parte do pai. Não ouvia opiniões. Só a vontade dele prevalecia. Não hesitava nem um momento em puxar a toalha da mesa com pratos de sopa ou qualquer outro alimento (quando tinha ), aos gritos , se algo o contrariasse naquele instante. Apavorando os filhos e a mulher, ainda desperdiçava as parcas provisões.

E todo o tumulto que ele provocava, não tinha nada a ver com bebida alcoólica. Era mesmo uma questão de temperamento forte, dificílimo e instável.

E a Pedro, que era o mais velho, coube ficar protegendo a mãe e a tia, até poder ir também. Sair. Sentir-se livre.

Nunca foi possível.

Um dia, tempos depois, os irmãos voltaram a passeio, com as respectivas famílias. Tinham encontrado seus caminhos. Pedro também encontrara o seu. Ali mesmo.

Jamais entendeu a natureza daquele pai que, com seus modos turbulentos, subjugou sua mulher e seus filhos. Um pai cuja chegada era temida ao extremo e cuja ausência era um grande alívio.

Até que um certo dia o seu coração não suportou tanta energia negativa. E libertou-se de si mesmo, quando a morte o encontrou em meio às meretrizes.

O tempo passou como sempre. E hoje, Pedro, depois de tudo, olhando seus filhos e esposa, recordando suas pelejas, anseios e renúncias, as histórias de seus irmãos, deduz que, sendo a liberdade um bem tão desejável e pelo qual tanto se luta, traz-nos muitas vezes para uma nova prisão .

Talvez não exista mesmo a liberdade completa, porque ela não é apenas uma. São muitas. E se de um lado o homem se liberta, haverá sempre um outro de onde não consegue se desprender.

E assim, recomeçando a busca por ela, passam os dias, os anos, a vida vai passando num círculo que se repete...repete...repete...

Esther Lessa
Enviado por Esther Lessa em 08/06/2013
Reeditado em 08/08/2020
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